sexta-feira, 31 de março de 2017

Ninguém Deve Ser Uma Ilha


Há um espírito de manada, de conexões e redes, pautando o modo de ver o mundo. As coisas que nos cercam devem ser observadas sob certos aspectos, por teses pré-determinadas. Algo como: “se você não sabe, jogue no Google e ele lhe dará a resposta” ou “vou atrás do que disse Fulano sobre esse assunto para ter uma opinião formada”. Como se houvesse apenas uma resposta pela qual optar.

É um sentimento comum, cosmopolita. Grandes cidades, pessoas conectadas, próximas (real ou virtualmente), vivenciando o caos, unidas por um ideal. Esse, em muitos casos, superado ou que não representa nada de novo.

Vivemos um período de embrutecimento dos debates. Parece ser uma marca de nosso tempo. O maniqueísmo a que estamos expostos é uma chaga antiga e que, mesmo na diversidade deste “novo milênio”, parece ser a única saída para se ter razão. O próprio conceito de “ter razão” ainda não ter sido superado é algo assustador. Por que é relevante ter razão, “vencer” uma discussão?

As visões políticas de esquerda e direita são apenas dois exemplos claros que nos rodeiam. Não há como evitá-los. Qualquer tentativa de junção ou afastamento dessas correntes mesquinhas significa fuga da realidade. Afinal, é inconcebível que algo convirja de lados opostos. Buscar aproximar esses paralelos resulta em uma pretensa neutralidade, imparcialidade ou isenção. Neste contexto de guerrilha que vivemos, de luta pela verdade, acaba se tornando uma péssima saída.

Seria como, retornando ao conceito de cidade, isolar-se no interior, onde só existe mato, em uma casa sem eletricidade e saneamento básico. À noite, nosso personagem hipotético deve acender uma fogueira com pedras e uivar para a lua.

O cenário é de brutalidade, e não estar em nenhum lado desse “bom combate” significa ser cúmplice do lado oposto. Como no clichê “quem cala consente”, ou no volta e meia lembrado “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Não há saída. Você terá que optar por uma das portas disponíveis. Ao abri-la, a impressão é de que tudo já está escrito e catalogado. Mesmo assim, você deve seguir. Escolha uma ideologia pronta para cada fenômeno que surgir. As cartilhas e lugares-comuns se tornarão mantras repetidos à exaustão. Pronto. Você é mais um na multidão. Do outro lado da rua existe a outra.

Quem adere a esses movimentos, além de obter um sentido para a vida, percebe o quanto essa vida é simples e repleta de significados “superiores”. Aliás, aí está um termo comumente utilizado por quem tem essa fé cega: simples. Há imigrantes ilegais? Simples. Construa-se um muro na fronteira. Não há mais segurança? Simples. Basta armar a população ou retomar a presença do Exército nas ruas. Seu partido sempre se disse “ético”, mas foi flagrado em operações criminosas? Simples. Diga que é tudo invenção da mídia.

Mesmo diante de um vasto mundo, repleto de possibilidades, nos sobram poucas alternativas. Temos as soluções fáceis e os discursos prontos à disposição para estarmos inseridos num contexto, para existirmos. Cabe a nós apenas compartilhar, curtir, registrar, pois ninguém quer ser só, pois ninguém deve ser uma ilha.

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Texto originalmente publicado no site Mínimo Múltiplo - http://minimomultiplo.com/index.php?page=283 

Sobre esse mesmo assunto, há uma ótima esquete do Monty Python: A vantagem de ser um extremista - https://www.youtube.com/watch?v=IfxewiOu9_k

sábado, 11 de março de 2017

Dia dos Pais


- Meu pai era horrível. Me ofendia de tudo quando era pequeno.
- O meu era pior. Me batia.
- Mas o meu também me batia. Me surrava com tapa na cabeça.
- Isso não é nada. Eu apanhava de relho.
- Falei dos tapas. Mas ele me espancava mesmo era com um pedaço do pau. 
- Já levei com as costas do facão no lombo.
- Eu tomei até tiro do meu velho.
- Se é por isso, eu fiquei em coma um mês depois duma tunda.
- E eu morri uma vez. 
- É... teu pai era mesmo muito ignorante. O meu nunca chegou a tanto.

terça-feira, 7 de março de 2017

Ervilhas


Eu tava na outra fila do buffet, quando vi uma senhora, aparentando mais de 90 anos, encher seu prato de ervilhas. Foram seis colheradas.

- Não sabia que tu gostava tanto de ervilha assim, vó - disse o homem, já grisalho, que a acompanhava.
- Sim. Como desde sempre.

Voltei uns passos e, prontamente, toquei ervilha por cima de tudo que tinha servido. Porque eu quero viver bastante.