sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Modiano Perseguindo Fantasmas


A obra de Patrick Modiano ganhou visibilidade após seu reconhecimento com o Nobel de Literatura, em 2014. Mesmo assim, parece que ainda não mereceu a devida atenção no Brasil. Estamos falando de um grande e inventivo escritor. Um homem com fixação pela memória. Um prisioneiro do seu tempo, como o próprio afirmou em entrevistas.

As incertezas factuais que as lembranças trazem são temas recorrentes em sua carreira literária. Outro ponto comum – e central – é a geografia. Seus livros são ambientados em Paris, seu local de nascimento e onde reside. Entretanto, a Paris que o autor descreve não existe mais – é a cidade ocupada pelos nazistas; a que tenta se reconstruir após a segunda guerra, repleta de homens e mulheres que não deixaram pistas de seu passado. E são esses seres esquecidos que Modiano descreve, persegue e tenta contar suas histórias. Aliás, história que também é a sua, afinal, ele é filho de um judeu e cresceu durante a ocupação alemã na França. Não há didatismo ou maniqueísmo em sua abordagem. Essa postura é uma das virtudes do autor – ainda mais nessa época de julgamentos em tempo real e dicotomias tolas.

Os personagens principais de seus romances mantêm um pé no presente e os olhos fixos no passado, buscando montar quebra-cabeças nebulosos, com peças ausentes, imprecisas. Modiano não utiliza arroubos líricos em sua narrativa. Sua verve é bem simples e as tramas que constrói não são maçantes Contudo, os enredos se mostram minuciosamente descritos. Tudo isso condensado em livros que não ultrapassam as 200 páginas.

Da sua bibliografia - são mais de 30 livros -, os destaques são os sublimes romances Dora Bruder e Remissão de Pena – curiosamente, ambos tratam da infância e juventude. Outros títulos de Modiano que merece atenção são Uma Rua de Roma e Flores da Ruína. Deste último, publicado em 1991, há dois trechos que evidenciam as intenções e efeitos que sua ficção nos apresenta.


Tomava notas. Sem ter uma consciência clara disto, começava meu primeiro livro. Não era levado por uma dor particular, mas simplesmente pelo enigma que um homem que eu não tinha nenhuma chance de encontrar me apresentava, e por todas aquelas perguntas que jamais teriam resposta.

Às minhas costas, o jukebox tocava uma musica italiana. O cheiro de pneus queimados pairava no ar. Uma jovem avançava sob as folhas das árvores do boulevard Jourdan. A franja loura, as maçãs do rosto e o vestido verde eram o único toque de frescor naquele início de tarde agosto. De que adiantava tentar resolver mistérios insolúveis e perseguir fantasmas, quando a vida estava ali, em toda a sua simplicidade, sob o sol?

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Eu não havia me afastado da janela. Sob a chuva torrencial, ele atravessou a rua e se encostou no muro de apoio da escadaria que tínhamos descido havia pouco. E continuava lá, de pé, as costas apoiadas no muro, a cabeça erguida na direção da fachada do prédio. A água da chuva escorria do alto das escadarias e caía sobre ele, e seu paletó estava encharcado. Mas ele não se movia um milímetro sequer. Então houve um fenômeno para o qual tento hoje encontrar uma explicação: a lâmpada do poste que, do alto, iluminava a escadaria se apagou de súbito. Pouco a pouco, aquele homem se fundia ao muro. Ou então a chuva, de tanto cair sobre ele, apagava-o, como a água dilui uma pintura que não teve tempo de se fixar. Embora eu apoiasse a testa contra o vidro e perscrutasse o muro cinza escuro, não havia mais vestígio dele. Ele havia desaparecido desse jeito repentino que eu notaria mais tarde em outras pessoas, como meu pai, e que deixa alguém perplexo a ponto de não restar outra opção a não ser procurar provas e indícios para persuadir a si mesmo de que essas pessoas de fato existiram. 


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