sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Conto Inédito - Quando Fui Puta


Eu tinha passado dos quarenta. Estava fora do peso. Peitos caídos. Não usava biquíni há tempo – agora, era maiô na praia e na piscina. Me achava velha. Eu acreditava que uma mulher da minha idade deveria responder à etiqueta. Vestir roupas sóbrias e manter certa uma postura. Confesso que tinha a convicção que o sexo era uma picardia juvenil. Mas ainda tinha a bunda grande. Com estrias brancas – como um eletrocardiograma – transcorrendo das nádegas às coxas. Com um número considerável de celulite. Ele estava pouco se lixando para isso. Ele era tarado por minha bunda. Trabalhava comigo e me olhava de um jeito... Eu sentia um calorzinho por dentro. Ceder seria uma insanidade. Ceder seria infantil até. Mas por que não? Porque eu era casada? Porque eu tinha filha pequena?

Quando me vinham esses pensamentos, lembrava de imediato de meu pai. Sempre grosseiro. Sempre estúpido. Sempre com uma resposta para tudo que existe no mundo. Sempre com “a” razão. O dono da verdade falava assim.

- Tem um monte de mulher puta no mundo. O curioso é que nenhuma delas é mãe de ninguém.

E concluía dizendo que a gente se achava superior aos homens. Segundo ele, tudo não passava de discurso vazio e moralista.

- Ninguém presta... – finalizava.

E não discutia ou emitia qualquer outra opinião. A família ficava boquiaberta. Nesses encontros com tios, primas, avós – geralmente, aniversário de alguém –, ele sempre encontrava uma maneira de falar asneira e deixar o clima tenso. Ele não estava nem aí pra ninguém. Egoísta. E pais não podem ser egoístas. O fato é que cresci com essa merda na cabeça. Pensando que mulher, para “prestar”, tinha que conter seus instintos. Responder a etiquetas. Segurar a onda e não dar para qualquer um. Quando desse, era só para esse um. Já os homens, não. Os homens blá blá blá blá... As feministas tinham razão em sua ladainha. Mas elas sempre me passaram a impressão que queriam “prestar”. Eram muito certinhas. Eu ficava mais atraída com a imagem das mulheres que faziam filmes pornôs. Nas vezes que assistia – sempre sozinha – tinha a impressão que elas eram livres. E pareciam tão felizes... Não havia opressores e oprimidos no sexo que elas faziam.

A questão é que o desgraçado do velho já tinha morrido de tanto beber. Não fazia sentido ainda pensar nele quando recebia um olhar daqueles. Foda se!

Em um intervalo para o almoço, fomos para um motel. Conduzi a coisa toda. Deixei que admirasse minha bunda. Deixei que fosse sem camisinha. Deixei que gozasse nela. Depois, deixei que ele desferisse tapas com força. Deixei que acariciasse os vergões. Rebolei sem jeito – como se soubesse rebolar –, só para ele assistir minha bunda balançando. Até que ele não resistiu e a beijou. Enfiou seus dedos compridos. A cara toda. O pau. De novo.

No outro dia, fui trabalhar de vestido. Recebi o mesmo olhar quando nos cruzamos. Não conseguimos um instante a sós. Depois de mijar, tive vontade de me tocar. Lavei o rosto e desisti da ideia. Senti uma pequena angústia. Só parei de pensar nele quando peguei minha filha no colo, na creche, e a levei até o carro. À noite, usei meu marido para transar com aquele olhar. Quando ele acabou, fui ao chuveiro e segui com aqueles olhos me consumindo. A água batia em todo o meu corpo. Mas eu não me refrescava, nem sentia vontade de me limpar.

Propus que ele viesse até minha sala, após o expediente. Trepamos sobre a mesa. Luzes apagadas. Porta trancada. Estava louca que alguém da vigilância batesse. Ninguém bateu. Acabou passando do horário de buscar minha filha na creche. Pedi a meu marido que fosse. Ele queria saber o motivo. Inventei qualquer bobagem.

Seguimos. Em um mês, eu já tinha feito boquete enquanto ele dirigia, inserido vibradores de vários formatos e cores, transado no banheiro masculino da firma, batido uma punheta para ele no cinema enquanto assistíamos O Lobo Atrás da Porta, deixado me fotografar por debaixo da mesa de um restaurante sem calcinha. O ponto alto foi quando fudemos na sala de estar, de madrugada, enquanto meu marido dormia. Fiquei de quatro, corpo escondido pela parede, cabeça voltada para o quarto. Monitorava a porta entreaberta ao final do corredor. Não fizemos nenhum ruído. Até que ele me deu um beijo brusco na boca, um tapinha na bunda – indicando que havia acabado e eu podia me arrumar – e saiu. Fui para a janela e vi seu carro sumir na noite. Seu gozo escoria por minhas coxas. Um pingo desceu mais depressa e alcançou meu tornozelo direito...

O melhor horário era logo depois do expediente. O dia nos excitava mais. Porque era inóspito. Porque sempre tinha a possibilidade de infringir algo. E, assim, criar algo novo. Fomos flagrados em uma garagem particular, no Centro Histórico. O funcionário – um jovem com espinhas no rosto e boné quase tapando os olhos – desconfiou. Viu que o carro estava um pouco à frente que os demais. O motivo: estávamos atrás do porta-malas. Eu deitada no concreto. Ele sobre mim, com aqueles olhos... O rapaz não soube o que fazer. Não interferiu, nem comentou nada. Ao vê-lo parado ali, eu apenas disse que estávamos acabando. Ele então falou.

- Tudo bem... Tudo bem...

E fez de conta que saiu. Mas foi um golpe falso, pois percebi que nos espiava atrás de outro carro. Imaginei que estava se masturbando, me vendo ali. 

Por tudo isso, desisti definitivamente de buscar minha filha na creche. Meu marido protestou. Como a situação ficou insustentável. Aproveitei e desisti do meu marido também. Era livre. Tinha o final de tarde e início de noite para esquecer e aceitar o tempo. Aproveitei e aceitei outras mulheres, travestis, outros homens – enfim, a tal dupla penetração, que não achei nada demais; só sentia o pau dele. Aceitei o que lhe excitava. Fui a um haras. Deixei que me filmassem masturbando um cavalo. Bebi aquilo tudo. Depois do bicho, sem câmeras me gravando, me encostei em uma cerca, empinei minha bunda grande e vi uma fila de homens se formar. Somente trabalhadores do local. Quinze ao todo. Entre eles, fui a primeira de um menino de 16 anos, o filho do caseiro. A cada um que me comia, percebia aquele olhar. Eu sentia que aquele olhar ainda me admirava...

Não sei quando aqueles olhos – duas bolas pretas e profundas – fugiram de mim. Só sei que não pude aceitar. Aquele olhar era tudo que eu tinha. Aquela veneração por minha bunda... Quando perguntei o motivo, ele afirmou que não sabia. Após minhas investidas tresloucadas, sumiu por seis meses. Quando lhe achei, implorei com mais força. Ele disse que não havia possibilidade. Que eu estava sendo ridícula. Que as coisas mudam. Que as pessoas desistem. Que nada dura para sempre. Que tempo fode com tudo. Mas com uma facada no seu bucho, consegui convencê-lo a ficar. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Quintana Lançando Bóias Ao Mar Revolto



Poema consta no livro Apontamentos de História Sobrenatural, de 1976. Também foi selecionado por Italo Moriconi como um dos Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Conversando Com Um Ator


Ele era ator, mas nunca havia encenado uma peça, filme, novela, comercial ou algo do tipo. Assim como eu era escritor sem nunca ter publicado nada.

Ele era um tanto curioso. Durante uma conversa informal, mudava de tom, trejeitos, posturas e convicções políticas ou religiosas. As mudanças, repentinas, aconteciam diversas vezes e em breves intervalos.

- Aproveito momentos como esse para ensaiar, criar personagens, me desculpe - ele falava, quando me via confuso diante da sua performance.

No fundo, eu o compreendia. A necessidade de se expressar é insuportável e, muitas vezes, torna as pessoas um tanto ridículas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Modiano Perseguindo Fantasmas


A obra de Patrick Modiano ganhou visibilidade após seu reconhecimento com o Nobel de Literatura, em 2014. Mesmo assim, parece que ainda não mereceu a devida atenção no Brasil. Estamos falando de um grande e inventivo escritor. Um homem com fixação pela memória. Um prisioneiro do seu tempo, como o próprio afirmou em entrevistas.

As incertezas factuais que as lembranças trazem são temas recorrentes em sua carreira literária. Outro ponto comum – e central – é a geografia. Seus livros são ambientados em Paris, seu local de nascimento e onde reside. Entretanto, a Paris que o autor descreve não existe mais – é a cidade ocupada pelos nazistas; a que tenta se reconstruir após a segunda guerra, repleta de homens e mulheres que não deixaram pistas de seu passado. E são esses seres esquecidos que Modiano descreve, persegue e tenta contar suas histórias. Aliás, história que também é a sua, afinal, ele é filho de um judeu e cresceu durante a ocupação alemã na França. Não há didatismo ou maniqueísmo em sua abordagem. Essa postura é uma das virtudes do autor – ainda mais nessa época de julgamentos em tempo real e dicotomias tolas.

Os personagens principais de seus romances mantêm um pé no presente e os olhos fixos no passado, buscando montar quebra-cabeças nebulosos, com peças ausentes, imprecisas. Modiano não utiliza arroubos líricos em sua narrativa. Sua verve é bem simples e as tramas que constrói não são maçantes Contudo, os enredos se mostram minuciosamente descritos. Tudo isso condensado em livros que não ultrapassam as 200 páginas.

Da sua bibliografia - são mais de 30 livros -, os destaques são os sublimes romances Dora Bruder e Remissão de Pena – curiosamente, ambos tratam da infância e juventude. Outros títulos de Modiano que merece atenção são Uma Rua de Roma e Flores da Ruína. Deste último, publicado em 1991, há dois trechos que evidenciam as intenções e efeitos que sua ficção nos apresenta.


Tomava notas. Sem ter uma consciência clara disto, começava meu primeiro livro. Não era levado por uma dor particular, mas simplesmente pelo enigma que um homem que eu não tinha nenhuma chance de encontrar me apresentava, e por todas aquelas perguntas que jamais teriam resposta.

Às minhas costas, o jukebox tocava uma musica italiana. O cheiro de pneus queimados pairava no ar. Uma jovem avançava sob as folhas das árvores do boulevard Jourdan. A franja loura, as maçãs do rosto e o vestido verde eram o único toque de frescor naquele início de tarde agosto. De que adiantava tentar resolver mistérios insolúveis e perseguir fantasmas, quando a vida estava ali, em toda a sua simplicidade, sob o sol?

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Eu não havia me afastado da janela. Sob a chuva torrencial, ele atravessou a rua e se encostou no muro de apoio da escadaria que tínhamos descido havia pouco. E continuava lá, de pé, as costas apoiadas no muro, a cabeça erguida na direção da fachada do prédio. A água da chuva escorria do alto das escadarias e caía sobre ele, e seu paletó estava encharcado. Mas ele não se movia um milímetro sequer. Então houve um fenômeno para o qual tento hoje encontrar uma explicação: a lâmpada do poste que, do alto, iluminava a escadaria se apagou de súbito. Pouco a pouco, aquele homem se fundia ao muro. Ou então a chuva, de tanto cair sobre ele, apagava-o, como a água dilui uma pintura que não teve tempo de se fixar. Embora eu apoiasse a testa contra o vidro e perscrutasse o muro cinza escuro, não havia mais vestígio dele. Ele havia desaparecido desse jeito repentino que eu notaria mais tarde em outras pessoas, como meu pai, e que deixa alguém perplexo a ponto de não restar outra opção a não ser procurar provas e indícios para persuadir a si mesmo de que essas pessoas de fato existiram. 


Leia também: Quem Poderia Ter Sido Dora Bruder 


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Notícias de Porto Alegre


Cecília,

Faz um calor intermitente em Porto Alegre. Você sequer imagina! Vi, em uma matéria transmitida na televisão, que até mesmo um senegalês – disseram que se trata de um refugiado – está sofrendo com a alta temperatura. Está muito difícil, querida amiga, circular pelas ruas. Alguns fazem troça e dizem que o melhor é viver nos shoppings centers mesmo. É mais seguro e não é tão calor. São uns gozadores!

Hoje de manhã, teve um fato curioso. Compareceu em meu escritório – desde cedo cerrei as janelas e acionei o ar-condicionado na função inverno; o visor de LED indicava 24 graus –, um representante do sindicato de jornalistas. Tratava-se de uma relevante visita de negócios. O homem – baixo, calvo, um pouco fora do peso e suando um bocado – foi muito cordial e solícito. Sua intenção era me convencer a fazer parte da associação de jornalistas que querem mudar o mundo com longos textos publicados nas tais redes sociais.

A adesão era simples. Como tenho formação na área – lembra de nossas tardes na Universidade? –, bastaria contribuir com uma mensalidade de R$ 25. Em troca, receberia uma credencial da entidade, com minha foto e, no verso do documento, uma assinatura do presidente da associação. Teria assim, uma garantia de credibilidade. E, segundo o homem, "quem sabe, não lhe agrega mais e mais leitores?".

Também fui gentil. Disse que analisaria a proposta e retornaria em breve. Isso é só o que tenho para lhe relatar no momento.

Como estão as coisas em São Paulo, Cecília? Conte-me as novidades.

Abraços!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A Serventia de Escrever


Quando o inverno chegar de verdade
A Literatura não terá mais serventia

Para nós

No máximo,
Aquecerá uns poucos e privilegiados

(Roçando as mãos)
Diante de uma breve fogueira

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sábado, 9 de janeiro de 2016

A Hora e a Vez dos Clássicos: Testamento - Manuel Bandeira


Autor dos livros A Cinza das Horas, Libertinagem, entre outros
TESTAMENTO
Manuel Bandeira


O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Vou Perder Um Amigo


Levei um cagaço quando ele me disse que era tarde, mas que eu ainda tinha salvação. Quis saber mais sobre.

- Basta aceitar Jesus, de verdade, e ir na igreja. Daí, tu vai ficar do lado Dele no céu – concluiu.
- Tá, mas só os que vão na igreja serão salvos? – perguntei.
- Sim.
- E quem mais vai nessa tua igreja?
- Muitas pessoas. Você vai gostar, certamente.
- Digo da nossa turma, dos nossos amigos.
- Só eu, por enquanto... Mas você gostar, aposto!

Pensei na proposta. Um amigo. Céu. Ao lado de Jesus. Se eu não fosse, perderia um amigo nesse cenário todo. Complicado.

Mas agradeci o convite. Tudo ficaria na mesma. Era melhor ficar com o restante do pessoal. Não posso deixar a maioria dos meus amigos pra trás.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Antes da Acareação


Escrevo sem motivo
Escrevo o que devia ter esquecido
Escrevo sobre os dias chuvosos que passei contigo
(E nessa cidade chove pra caramba)
Recordo todos
Os arredios
Os tediosos
Os promissores
Os que não tínhamos nada
Nem paisagem
Nem quadros na parede
Foram os melhores

Meu melhor amigo ficou surpreso
Afirmou que minha memória é péssima
Por não haver explicação sensata
Concluiu que era amor
Ou outro fenômeno que deixa os homens abobalhados

Se tivéssemos a tecnologia
Teríamos registrado
E perdido
Um bocado daqueles dias

Eles se foram

O fato é que
Não tenho como provar
(poemas tolos não valem nada)

Mas mesmo assim
Quando disse ao oficial que fui feliz
Ele me olhou com uma cara estranha
E seguiu escrevendo a nossa história

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