quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Quando o Aplauso Não Vem


Vou contar uma de bastidores pra vocês. Recentemente, escrevi um livro infantil. Nunca imaginei que teria capacidade de construir algo para crianças. Fiquei satisfeito com o resultado. "Fiz o melhor que pude com o que tinha em mãos", como diz Philip Roth. Sempre que acabo um trabalho, mostro para meus amigos - leitores exigentes e ótimos conselheiros. A maioria já me acompanha e contribui muito no desenvolvimento crítico da minha escrita.

Pois bem, o tal livro infantil foi bem aceito - um deles me afirmou que foi a melhor coisa que escrevi. O título era "O Gato Que Se Chamava Rex". A sinopse da história: um gato que age como cachorro e tem de conviver com o estranhamento dos cães, gatos e humanos que o cercam. A sacada seria trabalhar os gêneros com a gurizada.

Mandei o original para uma editora média, com experiência em literatura infantil. Tive, para minha surpresa, uma resposta imediata. Em questão de horas, a editora responsável me retornou o email. Adorou o livro. Disse não conseguiu parar de ler. "E que título!".

Eu acreditei que a afirmação de meu amigo estava certa. Era, provavelmente, a melhor coisa que tinha escrito. Entretanto, a vida não isso é aí que vocês assistem pelo Facebook. A editora desistiu e nas outras tentativas de publicação não tive retorno positivo.

A lição é bem simples. Quem se mete com literatura tem que estar disposto ao fracasso. Tem que estar disposto a ser o palhaço que faz troça e espera o aplauso. Muitas vezes, ele não vem.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Retrospectiva 2015: Um Ano Nada Original



"(...) no cinema, o sucesso do momento é “Star Wars”. Na televisão, “Escolinha do Professor Raimundo”. No futebol, o Barcelona dá aula. Tem algo errado com este ano... A sensação é de que estamos nas décadas de 80 ou 90. É só a pochete voltar a virar moda! Daí, não faltará mais nada. (Falando em moda, será que 2015 ficará marcado pelo surgimento dos livros de colorir para adultos? Melhor deixar pra lá...)".

Política, cultura, esporte, comportamento... Não foi fácil fazer um panorama desse ano, para o site Mínimo Múltiplo. Mas ela taí. Contei a ajuda e a edição do sempre atento Lucas Colombo.

Acho que o resultado ficou bacana. Neste link, o texto completo http://minimomultiplo.com/index.php?page=267


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

A Misantropia Literária de Raduan Nassar


Não são poucos os casos de escritores reclusos, que evitam seu público, imprensa e tudo mais. No Brasil e no mundo há diversos exemplos. Rubem Fonseca (teve uma rara e recente aparição pública em Portugal, em 2012, esbanjando carisma), Dalton Trevisan, Thomas Pynchon, Salinger...

Curiosamente, todos optam pelo recolhimento após iniciar a carreira e obter um certo sucesso literário, com repercussão, dando entrevistas em televisões, revistas, etc. Fica evidente que não são reclusos por natureza. Tornam-se depois de reconhecidos. As razões não são esclarecidas. Os escritores preferem tergiversar, talvez, para alcançar uma aura mítica em vida.

Com Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica e Um Copo de Coléra, também foi assim. A diferença é que ele, segundo o próprio confirma, abandonou a escrita. Nassar não vive isolado, fugindo das lentes ou vestindo óculos e chapéus que escondem seu rosto. Ele resolveu dedicar sua vida a agricultura. É uma pessoa acessível, fácil de se localizar. Porém, nega entrevistas e contato com a imprensa. Há relatos na internet de estudantes e escritores que o encontraram ou mantem contato rotineiro.

Entretanto, na maioria das descrições, Nassar transparece uma misantropia com a Literatura e tudo que a envolve. Na entrevista mais longa que concedeu, aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituo Moreira Salles, em 1996, tem muito desse sentimento nas suas respostas. Algo o incomodou, porém, não fica evidente o que ocorreu.

Vale dar uma lida na longa conversa. Separei algumas respostas do (ex-)escritor.

"Não tem muito que esclarecer. Em todo caso, veja esses dois versos do Jorge de Lima que já citei à exaustão: "Há sempre um copo de mar / para um homem navegar". As palavras empregadas são do quotidiano, a rima é comum, a sintaxe não poderia ser mais simples. Mas são dois versos generosos para a imaginação. Ou a descoberta que o personagem do Ibsen revela para a mulher em Um inimigo do povo: "O homem mais forte é o que está mais só". Uma afirmação sem qualquer artifício no seu enunciado, de que você pode inclusive discordar, mas que é fascinante no contexto da peça. E segura essa: "Desisti de escrever porque há um excesso de verdade no mundo", uma afirmação do Otto Rank, que o Abbate me deu de presente quando abandonei a literatura".

"Só desequilibrados é que descobrem que este mundo não tem importância".

"Só pra se ter uma ideia, já disseram que o conceito de solidariedade não será mais entendido pelas novas gerações do próximo milênio. Em sintonia com isso, certos escritores vinham há tempos chupando o sangue das palavras, queriam a qualquer custo acabar com os sentimentos na literatura. Andaram complicando um pouco as coisas. Isso me faz lembrar um conto húngaro, em que um ferreiro fazia operações de catarata com um instrumento rústico, mas sempre com muito êxito. Sua fama trouxe até ele os sábios da medicina, já viu! Deitaram tanto conhecimento em cima do pobre ferreiro que acabaram por inibi-lo, a ponto de ele nunca mais conseguir levar a cabo uma cirurgia. Aqueles sábios procuravam provavelmente compensar a sua falta de talento para fazer com um suposto conhecimento de como fazer. Deviam até passar por ótimos teóricos, mas só atrapalhavam. Acho que a literatura perdeu certa ingenuidade, como aquele ferreiro depois da visita dos sábios. Em literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo pras cucuias. Na minha opinião".

"Seja como for, talvez a gente concorde nisso: nenhum grupo, familiar ou social, se organiza sem valores; como de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste é que o capeta deita e rola".

"Futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo etc. Confesso que sou o exemplo mais acabado de ignorância de tudo isso, por consciente desinteresse".

"Obsceno é toda mitificação. Obsceno é dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto. Obsceno é não fazer uma reflexão pra valer sobre o conceito de mérito, dividindo tão mal o respeito humano. Obsceno é prostrar-se de joelhos diante de mitos que são usados até mesmo como instrumento de dominação. Obsceno é abrir mão do exercício crítico e mentir tanto".

Você pode ter acesso a entrevista completa nesse link: http://www.blogdoims.com.br/ims/entrevista-com-raduan-nassar-2


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Perder a Inocência Faz Mal ao Escritor*


Por Antonio Carlos Viana

Comecei a escrever por acaso. Não foi algo planejado, que tenha nascido de um desejo irrefreado. Nunca me peguei dizendo: “Vou ser escritor”. Claro que, um dia, tive meus sonhos de ser poeta, como todo bom adolescente, mas logo desisti do intento quando descobri que estar ao lado de um Drummond, de um Bandeira, não era nada fácil. Pensava que para escrever poesia bastava seguir a emoção. Quando descobri, mais adiante, que era preciso ter muita aplicação, muita técnica, e conheci a obra de João Cabral de Melo Neto, desisti de vez da poesia.

Só fui voltar a pensar a escrever já alguns anos depois de formado em Letras. Aí já tinha lido muito, descoberto grandes autores, visto que a imaginação podia ser a porta para criar universos bem pessoais. Foi nessa época que descobri um contista goiano injustamente esquecido hoje: José J. Veiga. Houve, de imediato, sintonia entre mim e ele desde a primeira leitura de Os Cavalinhos de Platiplanto. Senti que aquele poderia ser meu caminho, explorando, sobretudo, o universo da infância, que é de uma riqueza infinita para quem se propõe escrever.

Do primeiro conto ninguém esquece. Havia comprado uma maquina de escrever Remington portátil. Naquele tempo, início dos anos 1970, comprar a primeira máquina de escrever correspondia hoje não ao primeiro computador, mas ao primeiro carro. Quando cheguei em casa com aquele troféu, fruto de minhas sofridas economias, pus uma folha de papel e comecei a escrever o que me veio à cabeça. Deixei que minha imaginação guiasse meus dedos. Saiu uma história estranha, a de um menino cujo irmão parece estar morto sem que a mãe dê a menor atenção ao fato. Fui adiante, não quis censurar nada. A história ganhou caminhos insuspeitos e eu mesmo me surpreendi com seu desfecho. Daí para o segundo conto foi um pulo. E veio o terceiro, o quarto... Achei que era aquele meu caminho, se eu quisesse ser mesmo escritor, ainda uma vaga ideia em minha cabeça. Como não tinha a quem mostrar meu trabalho, resolvi mandar os melhores contos para dois concursos literários. Surpreendentemente ganhei os dois. Foi uma notícia que me deixou surpreso. Descobri que escrever poderia ser fonte de emoção, sobretudo depois de concluído e aprovado o trabalho por um júri exigente, como o dos concursos que ganhei.

Dali em diante, não parei mais de escrever. Se ainda havia em mim os desejos de ser poeta, os enterrei de vez. Teria de cavar meu lugar entre contistas, o que também não seria nada fácil, depois de ter conhecido Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector... Era a época do realismo mágico e parecia ser fácil escrever nessa linha, só que não era. O fantástico tem suas leis e é preciso observá-las para evitar as facilidades do gênero.

Paralelamente a essa minha descoberta de que podia ser contista, continuei lendo muito, sobretudo livros ligados à técnica literária. Para aprimorar meus conhecimentos, fiz mestrado em Teoria Literária; anos depois, doutorado em Literatura Comparada. A facilidade do início da carreira, fruto da ingenuidade, foi sendo substituída pela complexidade do fazer literário, resultado da leitura de teóricos como Roland Barthes, Todorov, Kristeva, Lotman e outros não menos complexos.

Confesso que, desde então, escrever se tornou uma tortura. Não conseguia mais produzir nada com a tranquilidade dos primeiros contos. Saber teoria não melhora a produção literária, a não ser que você esqueça tudo na hora do trabalho, o que é difícil. Perder a inocência faz muito mal ao escritor. Minha batalha agora era tentar separar o estudioso de teoria do escritor que pretendia ser. Consegui isso a duras penas, depois de um grande silêncio criativo, quando pensei que iria abandonar de vez a escrita. A fonte havia secado. Senti que, se não desvinculasse o escritor do professor de teoria, jamais voltaria a escrever qualquer miniconto.

A aprendizagem foi dura e longa. Hoje, como nos primeiros tempos, deixo a imaginação alce voo, sem censura, sem me cobrar resultados imediatos a cada conto que estou escrevendo. Se der certo, ótimo. Se não, tomo apenas como exercício. Como me considero um discípulo de Paul Valéry – fundamento de minha tese de doutorado –, sempre acho que um texto pode ser trabalhado ao infinito. Quem põe um ponto final nele é o editor, quando diz “chega”. Para o autor, a obra é interminável, sempre passível de reconstrução. Valéry dizia também que não há texto perdido, desde que a gente o trabalhe até chegar a uma forma, se não perfeita, pelos menos que nos satisfaça. É isso que persigo obstinadamente. Primeiro, escrevo o texto, que nunca vem pronto de primeira. Nunca sei aonde vai dar. Assusta um pouco, porque você pode colocar nele toda sua energia e esperança e, ao final, não chegar ao resultado que esperava. Muitos contos já vêm mais ou menos bem delineados, outros precisam de anos para chegar a um fim que me agrade. Esse trabalho é incansável. Ocupa os dias e as noites. Às vezes, acordo pensando numa personagem que deixei em suspenso ontem à noite. O trabalho de limagem é o mais difícil. Quase sempre a primeira forma é a melhor. À medida que vou sofisticando o texto, vejo que só pioro. É preciso ter a medida certa, o que nem sempre é fácil. Por isso preciso de uns três ou quatro leitores especiais para apontar meus defeitos.

Qualquer coisa que a gente escreve pode chegar a um bom termo, desde que trabalhemos, trabalhemos, sem trégua. Hoje posso dizer que tenho alguma tranquilidade para escrever. Sei que nem tudo vai dar certo. É com pena que abandono algumas histórias que teimam em não se concretizar. Que fazer? Nada. Certas personagens são como certas pessoas: atiçam nossa curiosidade e depois somem para um espaço a que não temos mais acesso. Resta-nos a frustração do conto que não foi escrito e que nunca será esquecido. Não adianta brigar com os contos que não deram certo. Melhor trabalhar aqueles que se mostraram dóceis ao nosso tato. Escrever exige muita paciência.

* Texto originalmente publicado no livro Ficcionais (Editora Cepe, 2012), onde 32 autores contam suas experiências na produção de suas obras literárias.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Ele Disse-me Assim


Então, o velho me disse assim.

“Enquanto a lei permitir, eu vou comer carne vermelha, fumar, beber e jogar na loteria esportiva”.

Jurei que ele tinha falado Deus, ao invés de lei. Mas ele não tinha jeito de quem acreditava.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Justified - Série Baseada Em Um Conto de Elmore Leonard


Porque um seriado baseado na obra de Elmore Leonard tem que ter frases excepcionais.



As imagens são de um episódio da sexta temporada (a última) de Justfied, que é inspirada no conto Fire In The Hole, do grande livro Quando As Mulheres Saem Pra Dançar (Editora Rocco, 2005).

Aliás, Elmore Leonard, falecido em 2013, é fonte de inspiração recorrente em Hollywood. Muitos filmes, com sucesso de público e crítica, são baseados em suas histórias.

Nesse link (http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/53660), há dez exemplos.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Entrevista com Ian McEwan

É sempre bom saber o que Ian McEwan pensa. O autor de Na Praia, Serena, A Balada de Adam Henry, entre outros, contou um pouco de sua história nessa ótima entrevista ao El País. Separei duas respostas, o bate-papo completo está no link abaixo.



"Uma das noções mais destrutivas da história do pensamento humano é a utopia. A ideia de que é possível formar uma sociedade perfeita, seja nesta vida ou em outra posterior, é muito destrutiva. Porque a consequência é que não importa se você matou um milhão de pessoas no caminho: o objetivo é a perfeição e isso desculpa qualquer crime. É uma fantasia que teve seus equivalentes seculares, no comunismo soviético, por exemplo, e também com os nazistas. A ideia da redenção, uma ideia milenar, sempre exige inimigos".

"Quando jovem, trabalhei seis meses como lixeiro em Camden, pendurado em um caminhão. E me dei conta de que, entre as pessoas com quem comia alguma coisa nos descansos, a variedade de inteligências era igual a se estivesse na universidade. Havia idiotas e pessoas brilhantes. Me fez compreender como a sorte e o acidente do nascimento determinam quem você é". 

Entrevista completa aqui.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Dominguinhos, Muito Mais Que Um Coadjuvante


Sempre vi o Dominguinhos como um coadjuvante em nossa música popular. Um grande instrumentista, tocou com os grandes da MPB, aquela coisa... Mas esse disco de 1977, Oi, Lá Vou Eu!, comprova que eu tava por fora.

João Donato, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso e Jackson do pandeiro desfilam pelas 12 músicas, quase todas (10) compostas por Dominguinhos e Anastacia (cantora que foi uma das grandes paixões do sanfoneiro). Uma melhor que a outra.

Coisa Fina!


Os seus discos posteriores, Após Tá Certo (1979), Querubim (1981), Simplicidade (1982) e Isso Aqui Tá Bom Demais (1985) também são fora de série. Corram atrás da discografia de Dominguinhos!

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O Maior Verso Que Paulo Vanzolini Escreveu


Paulo Vanzolini foi um dos maiores compositores da nossa música. Letrista de primeira. O que poucos sabem é que sua formação era em Zoologia. Foi um cientista muito respeitado, com estudos em Harvard.

O autor de Ronda, Volta por Cima e outros clássicos começou a gostar sambas quando ouviu um homem declamar em um terreiro “Malandro se na minha cara der/ Tem que fazer testamento/ E deixar tudo pra mulher/ Se tiver filho vai deixar recordação/ Cara que mamãe beijou/ Vagabundo nenhum põe a mão”.

A partir daí, acreditou que poderia ser um compositor. Vanzolini gostava de um trago, da noite e de uma conversa comprida. Era um contador de histórias nato. Se vocês tiverem a oportunidade, vejam o documentário Um Homem de Moral (2009, direção de Ricardo Dias) e atestem o que estou falando.

Certa vez, perguntaram pra ele se “levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima” era seu maior verso. Vanzolini respondeu assim.

- É o mais conhecido, certamente. Mas ainda prefiro o “reconhece a queda e não desanima”. Esse verso é a alma da música.


Volta Por Cima

Chorei, não procurei esconder
Todos viram, fingiram
Pena de mim, não precisava
Ali onde eu chorei
Qualquer um chorava
Dar a volta por cima que eu dei
Quero ver quem dava
Um homem de moral não fica no chão
Nem quer que mulher
Venha lhe dar a mão
Reconhece a queda e não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Sobre o Uber em Porto Alegre

Foto: Divulgação/Uber

O argumento de que o Uber merece vir (ou tem que vir, como alguns citam) para Porto Alegre é baseado, conforme as leituras que faço, no serviço deficitário dos táxis regularizados. Há uns que falam em modernidade, inovação, livre concorrência, mas a finalidade dos comentários e teses é a mesma: o Uber vai trazer uma concorrência sadia para um serviço que não está agradando à população, que é o transporte público individual.

O que as pessoas não se dão conta é que temos outros Uber por aí. Menos glamorosos, sem carros de luxo, aplicativos em smartphones e propaganda em horários nobres. São os táxis clandestinos na Restinga e na cidade de Guaíba, assim como as vans escolares irregulares, em algumas escolas mais pobres. O estranho é que para estes nunca houve campanha para a regularização de seus serviços. Para esses, a multa de R$ 5.860 é bem-vinda, comemorada. Mesmo eles tendo a mesma premissa do Uber. Afinal, eles estão onde os táxis não estão ou, como dizem os economistas, eles suprem uma demanda reprimida.

Tanto o Uber como os táxis clandestinos, por não serem regularizados, não tem a vigilância do poder público. Isso significa que não tem como saber se o veículo está em dia, com pneus em bom estado e condutor condizente com a profissão que atua. Lógico, o Uber já existe em outros lugares do mundo e presta bons serviços. Sabemos disso. Porém, como o Legislativo vai separar legalmente um serviço de outro? Por que o Uber terá essa distinção? É por causa da comoção popular de uma parcela da sociedade? Esse é o debate que poderíamos fazer. Claro, se houver interesse pelo debate. É possível, como em qualquer discussão, que todos percam um pouquinho, em nome do bem comum. Já que todos sair ganhando será difícil.

Em São Paulo, uma lei para táxis executivos foi criada pela prefeitura e o Uber não quis participar. Já em São Francisco, Estados Unidos, os táxis regulares foram incorporados ao aplicativo do Uber. Lá, o passageiro pode optar por um táxi ou um “carro preto” no próprio aplicativo do Uber. Até o momento, o cenário é bem parecido nas capitais brasileiras (indiferente de partidos ou ideologias políticas), e em diversas da Europa, como Paris e Lisboa. O posicionamento é de que o Uber necessita de regulamentação, pois é transporte remunerado. Caso contrário, será enquadrado como clandestino, como os da Restinga, Guaíba e vans irregulares.

Os defensores do Estado Mínimo (de quanto menos tiver a mão do estado nas coisas, melhor) são coerentes em solicitar o Uber “de qualquer jeito”. O mercado e as pessoas que vigiem e selecionem o que consumir. É um modo de pensar. Agora, quem acredita que o Estado deve trabalhar pelas pessoas, monitorando e fiscalizando serviços essenciais, não podem ser incoerentes nesse debate. Vamos aguardar o seu desfecho e torcer para que a população saia vencedora.

Noções de Literatura com Norman Mailer


Norman Mailer, jornalista e escritor norte-americano (autor do clássico A Luta), foi entrevistado por Paulo Francis, em dezembro de 1996. Não é necessário discorrer sobre ou perder tempo com avaliações. É certeza de um grande encontro. Você tem que ver.



Algumas sentenças de Mailer.

“Flaubert escreveu Um Coração Simples e fez um camponês comum ficar interessante. Segundo ele, não havia pessoas sem graça, cabia ao escritor torná-las interessantes”.

“Crê-se que o escritor ou escritora escrevem sobre si mesmos. Não é verdade. Se temos um dom, é usar a experiência dos outros”.

“O fato é que o estilo muda (...). Novamente me ocorreu a imagem de Picasso. Ele pintava em vários estilos, usando o melhor para o que quisesse dizer. Pensei: “posso fazer o mesmo”, sem encontrar desculpas. Se quiser mudar de estilo, faça-o”.  

“Talvez, o romance sério não tenha função no século 21”. 

“Hoje, parece que o critério usado para o sucesso de um livro não depende mais do mesmo e sim de se o autor é politicamente correto, está na moda, etc”. 

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Quem me indicou o vídeo foi o sempre atento Lucas Colombo, editor do Mínimo Múltiplo, um dos maiores entendedores do Francis.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Boate Kiss – Uma Mancha Em Nossa História

Vítimas da Boate Kiss

A verdade é que eu tento não pensar em coisas tristes. Por isso, faço de tudo para não absorver o que vejo nos noticiários. Mas, às vezes, não tem jeito. Soube que uma boate, superlotada de jovens, incendiou. O resultado foi a morte de muitos rapazes e garotas. Ao todo, 32 mortos. Aconteceu na Romênia. Os responsáveis pela festa e demais envolvidos foram presos. Além disso, um político do alto escalão – o primeiro-ministro – renunciou. As ruas de Bucareste estão abarrotadas de pessoas indignadas, segundo relatos que vem de lá.

Há quase três anos, uma situação semelhante, porém, muito mais trágica, nos assombrava. Dia 27 de janeiro de 2013. Lembro direitinho do dia porque era aniversário de meu pai. Acordei cedo e me preparava para vê-lo. Liguei a televisão e não tinha como evitar o noticiário. Os plantões anunciavam que mais de 230 jovens haviam morrido em Santa Maria, na boate Kiss – no decorrer dos dias, algumas vítimas hospitalizadas faleceram e o número chegou 242.

Os mesmos cenários. Tanto na Romênia, como no Brasil, havia uma casa de show superlotada, sem os requisitos de segurança necessários, onde uma banda fazia um show pirotécnico que acabou em um desastre. Como, diante dessas realidades e fatos, as Justiças tiveram pareceres distintos? Como os romenos estão presos e os brasileiros em liberdade?

Protesto em Bucareste
Aqui, nosso legalismo esdrúxulo – o mesmo que permite ao cidadão o direito de não produzir provas contra si – sequer concluiu o caso e os envolvidos seguem respondendo em liberdade. E a possibilidade de renúncia de algum político sequer foi cogitada.

Já ouvi dizer, por juristas, que essa leniência, essa morosidade nos trâmites da Justiça, é reflexo da nossa jovem democracia, que tem receio de ser injusta, de parecer ditatorial. É um argumento. Contudo, diante de 242 vidas interrompidas, não me parece uma justificativa plausível. O caso da Boate Kiss é uma mancha em nossa história, que não ficará registrada somente pela tragédia, mas por se tratar de um vergonhoso descaso com muitas e muitas vidas – dos que se foram e dos que ficaram.

A verdade é que eu tento não pensar em coisas tristes, mas, às vezes, não tem jeito.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Graciliano Ramos: “Arte é Sangue, É Carne” ou "Só Podemos Expor O Que Somos"


Em carta enviada à sua irmã, o escritor Graciliano Ramos, autor de Memórias do Cárcere, Vidas Secas, São Bernardo, entre outros, comentou o que pensa sobre Literatura e o que significa escrever. Abaixo, o relato em resposta a um conto (chamado Mariana) que ela lhe enviou.

Rio, 23 de novembro de 1949.

Marili: mando-lhe alguns números do jornal que publicou o seu conto. Retardei a publicação: andei muito ocupado estive alguns dias de cama, a cabeça rebentada, sem poder ler. Quando me levantei, pedi a Ricardo que datilografasse a Mariana e dei-a ao Álvaro Lins. Não quis metê-la numa revista: essas revistinhas vagabundas inutilizam um principiante. Mariana saiu num suplemento que a recomenda. Veja a companhia. Há uns cretinos, mas há sujeitos importantes. Adiante. Aqui em casa gostaram muito do conto, foram excessivos. Não vou tão longe. Achei-o apresentável, mas, em vez de elogiá-lo, acho melhor exibir os defeitos dele. Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores de menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupas. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresente-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem experiência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só podemos principiar tarde; indispensável muita observação. Precocidade em literatura é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio, trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa aí, não tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus desenganos? Em Mariana você mostrou umas coisinhas suas. Mas – repito – você não é Mariana. E – com o perdão da palavra – essas mijadas curtas não adiantam. Revele-se toda. A sua personagem deve ser você mesma. Adeus, querida Marili. Muitos abraços para você.

Graciliano.

Você com certeza acha difícil ler isso. Estou escrevendo sentado num banco, no fundo da livraria, muita gente em redor me chateando.

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Carta extraída da Revista Graduando, número 1, jul/dez 2010, publicação da Universidade Estadual de Feira de Santana (BA). Do artigo Graciliano Ramos: O Escritor e o Homem, de Eliseu Ferreira da Silva.

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Graciliano faz um belo relato sobre o fazer artístico. Entretanto, há uma contradição em sua carta. Nesse trecho, ele ressalta: "As caboclas da nossa terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupas".

É uma provocação. Porém, o próprio escritor parece que não levou essa "dica" a sério, afinal, ele é o autor de Vidas Secas (1938). Um romance que retrata a miséria e a sobrevivência dos retirantes. E como é de conhecimento público, Graciliano era um homem de classe média, que nunca passou necessidade, assim como sua irmã.

sábado, 24 de outubro de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Lua na Sarjeta - David Goodis

Autor de Atire no Pianista, A Garota de Cassidy, entre outros

A LUA NA SARJETA
David Goodis

2

A Toca de Dugan era duas vezes mais velha que o dono, que já passava dos sessenta anos. O lugar nunca tinha sido reformado, e conservava piso, cadeiras, mesas e balcão originais. Toda tinta e verniz tinham desaparecido havia muito tempo, mas a madeira antiga era lustrosa, com o eficiente polimento de inúmeros cotovelos. Mas, exceto, a superfície brilhante das mesas e do balcão, a Toca de Dugan era um lugar opaco e ensebado. O tipo de lugar em que um relógio parece funcionar mais devagar.

Mas poucos clientes tinham relógio, e o de parede nem funcionava. Ali era muito pequeno o interesse pela passagem de tempo. Ia-se ao Dugan justamente para esquecer o tempo. A maioria dos fregueses eram velhos que não tinham o que fazer, nem aonde ir. Havia também as mulheres já de cabelo branco, sem dentes na boca e sem nada na cabeça além do efeito do uísque barato. A especialidade da casa era um duplo uísque de centeio, de cheiro fortíssimo, por vinte centavos.

Não tinha música, nem aparelho de televisão, e a única distração ficava por conta do próprio Dugan. Era um sujeitinho descarnado, só um tufos de cabelo na cabeça, e estava sempre assobiando, murmurando ou cantando alguma música, sempre desafinado. Era um habito que tinha adquirido há muito tempo, para o bar não ficar quieto demais. A maioria dos fregueses não conversava e, quando falavam, geralmente era de um amontoado de besteiras incoerentes que faziam Dugan desejar que estivesse em outro ramo.

Vez ou outra havia uma discussão, mas raramente resultava em alguma coisa de fato interessante. E nas poucas ocasiões em que o pessoal apelava para murros ou garrafadas, Dugan não movia um dedo para interromper. Sua vida era bastante monótona, e de vez em quando gostava de ver alguma coisa acontecendo.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

A Essência da Arte em Vivian Maier



Uma mulher que não foi amada. Uma mulher que trabalhou a vida toda de babá e empregada doméstica. Uma mulher de diversas famílias. Uma mulher de um metro e oitenta de altura que vivia em sótãos e porões, rodeada de jornais velhos. Uma mulher excêntrica e acumuladora de bugigangas. Uma mulher que registrava a alma dos outros. Uma mulher que vasculhava lugares esquisitos atrás de pessoas normais. Uma mulher que não via motivo em se expor.

Uma fotógrafa. Acima de tudo. Essa foi Vivian Maier, americana que viveu 83 anos sem reconhecimento algum de sua arte. Suas fotografias urbanas só ganharam visibilidade após sua morte, em abril de 2009, pelas mãos de um jovem que comprou os negativos em um leilão de garagem, sem saber direito do que se tratavam. Atualmente, há exposições dela em diversos países.

Vivian Maier foi um mistério. Ela se dizia francesa, mas, na verdade, nasceu em Nova York e forjava um sotaque, pois residiu um tempo na França, onde tem parentes até hoje. Passou pela vida de muitas pessoas, por trabalhar como babá e empregada doméstica. Entretanto, não contava a ninguém sua história. Isso tudo nos mostra o belo documentário “A fotografia oculta de Vivian Maier”, de 2013, dirigido por John Maloof e Charlie Siskel.

Quando as perguntas pessoais surgiam, ela desconversava. No dia-a-dia, inventava nomes falsos a desconhecidos no mercado, na banca de jornal, nos passeios com as crianças. Dizia que se chamava “Senhora Smith”. Vivian, tão logo iniciava o trabalho em uma casa, pedia que seu quarto tivesse trancas reforçadas. Não gostava que ninguém invadisse seu espaço.

Além das já citadas bugigangas, rolos de filmes e jornais velhos, Vivian acumulava muito silêncio. Um silêncio de 150 mil fotos, feitas em uma Rolleiflex. Cenas cotidianas de Chicago, Nova York e Los Angeles, principalmente, dos anos 50 e 60. A maioria das imagens nem sequer havia sido revelada. Ela também viajou, por oito meses, com sua câmera para Tailândia, China, Egito, Itália e Brasil.

Seu final foi trágico. Acabou sozinha, velha e louca – vizinhos relatam que comia restos do lixo, mesmo tendo o que comer – em um apartamento alugado por homens que foram cuidados por ela quando crianças.

O que apaixona em Vivian é que ela foi artista mesmo sem “viver” de arte, mesmo sem ter compromissos com o mercado artístico. Vivian não concebia Arte como uma profissão, como algo que se possa preencher ou destacar em uma carteira de trabalho. Sua profissão era babá e empregada doméstica. Sua sina, sua missão, era ser fotógrafa. Vivian tinha a essência do fazer dos grandes artistas: o compromisso com a sua verdade.

Por que nunca mostrou seu trabalho artístico? Por que não buscou o reconhecimento merecido? Por que deixou, de forma organizada, todos os rolos de filmes da sua máquina para a posteridade? São perguntas que ecoam tão logo se conhece a história de Vivian Maier. Mas não há respostas para nenhuma delas.

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Você pode ver algumas imagens no site da artista: http://www.vivianmaier.com/

sábado, 17 de outubro de 2015

As Mulheres de César


Uma das jogadas mais sujas do mundo da Comunicação é o tal do Marketing Social.

São as tais empresas que propagam (com grande projetos de divulgação, inclusive) que fazem o bem, que lutam por uma causa, que tem preceitos éticos e compromisso com as comunidades, etc.

Mas, na real, a causa delas é ganhar dinheiro/status em troca de usar a imagem de gente pobre.

Alguém pode rebater: pelo menos eles estão ajudando.

Ok, bacana. Daí, eu devolvo com outra: mas precisa de tanta campanha publicitária e alarde para mostrar que ajuda os outros?

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Julho é um Bom Mês Pra Morrer, de Roberto Menezes


Já tô com meu exemplar do mais recente livro do Roberto Menezes, Julho é um Bom Mês Pra Morrer. Quando comecei a ler os novos autores, me identifiquei muito com Palavras Que Devoram Lágrimas, romance anterior dele.

Só posso dizer que o Beto é um dos poucos seres humanos que sabe escrever e calcular bem. O cara é escritor e professor de física!

Bom, o livro tá lindão. Tem uma fonte de um tamanho honesto (hoje, quase todos tem umas letrinhas que vou te contar...) e vários detalhes gráficos bacanas.

Saiu pela Patuá e tá à venda no site da editora. Só clicar aqui!

sábado, 10 de outubro de 2015

O Escritor, Campos de Carvalho

Ilustração: Ricardo Humberto
A história do escritor que era avesso à publicidade, à glória e ao que considerava medíocre. 

Ciro Pessoa*

Em 1997, dois anos antes de morrer, o escritor mineiro Campos de Carvalho concedeu sua primeira e última entrevista a uma emissora de TV. Após 40 minutos de um quase monólogo, o entrevistador, desesperado, tentava fazer com que o escritor dissesse algo que fosse além dos três ou quatro monossílabos com que era brindado a cada nova pergunta. E arriscou: “O senhor é feliz?” Campos de Carvalho olhou para o alto do estúdio, para os lados, para o chão. Após um minuto e meio de um silêncio avassalador, ruidoso, o escritor finalmente respondeu. “Não.” O entrevistador, visivelmente constrangido, tentou uma “saída pela esquerda” e emendou: “Se o senhor pudesse mudar alguma coisa no mundo, o que mudaria?” De novo, um longo silêncio. Um pouco mais leve. E a resposta: “Nada”.

Assim era o escritor Walter Campos de Carvalho: desconcertante, avesso à publicidade, à glória, ao que considerava medíocre. Nascido em Uberlândia em 1916, formou-se em Direito aos 22 anos, já em São Paulo. Sua vida, contudo, sempre esteve ligada à literatura, apesar de só ter escrito seis livros. O mais conhecido, A Lua Vem da Ásia, é um verdadeiro manifesto surrealista. Depois que o escritor baiano Jorge Amado leu-o pela primeira vez, por volta de 1956, entrou numa livraria de Salvador e pediu para a atendente 30 cópias. Estava tão impressionado com o texto que havia acabado de ler que resolveu mandar exemplares de presente para os amigos. Eis um trecho da obra:

“Quando em 1934 atravessei sozinho o deserto de Iguidi, tendo por única companhia um casal de borboletas, ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode ocorrer a um homem vivo ou morto, e que procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão de Marrocos, onde servi como pude durante um ano e 14 dias”.

A trama de A Lua Vem da Ásia se passa num hospício e é cheia de lances hilariantes, como uma tentativa de fuga num zeppelin envolvendo personagens completamente absurdos. O nome dos capítulos (Capítulo sem Sexo, Capítulo CLXXXIV, Capítulo) e a total ausência de seqüência entre eles (do Capítulo Primeiro pula para o Capítulo 18 graus) dão uma idéia do que espera o leitor que nunca teve o prazer de ler Campos de Carvalho.

Em suas duas últimas entrevistas, uma para o fanzine Azougue e outra para o site literário Baladas.com, o escritor afirmou ser um surrealista e que a solução era o humor. Contou também que gostava de escrever andando na rua, com lápis e papel, e que jamais reescrevia nada. Em A Lua Vem da Ásia, por exemplo, havia uma frase que o Jorge Amado não gostava, “ele me pediu para tirar, mas eu jamais tirei”, disse Campos de Carvalho ao jornalista e escritor Antônio Prata na entrevista da internet.

O autor deixou mais três novelas além de A Lua Vem da Ásia, todas com títulos, digamos, diferenciados: Vaca de Nariz Sutil, A Chuva Imóvel e o Púcaro Búlgaro – esta última escrita em 24 dias. Depois disso, parou inexplicavelmente de escrever. Todas as obras foram produzidas entre 1956 e 1964 e só tiveram uma edição à sua altura em 1995, quando a Editora José Olympio reuniu tudo numa coletânea.

Campos de Carvalho costumava andar todas as tardes pelo bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde morou até os últimos dias de vida. Numa dessas tardes, teve um súbito mal-estar e, pouco antes de morrer, contou à mulher Lygia que estava passando mal “por causa de um sorvete que tomei”. Uma frase típica de Campos de Carvalho, o primeiro – e talvez o último – escritor verdadeiramente surrealista do Brasil.

* Jornalista, foi um dos fundadores da banda Titãs.

Texto publicado originalmente na revista Superinteressante (edição167, agosto de 2001).

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Exterior - Wally Salomão


Autor de Me Segura Qu'eu Vou Dar um Troço, Algaravias, Pescados Vivos, entre outros

EXTERIOR
Wally Salomão

Por que a poesia tem que se confinar
às paredes de dentro da vulva do poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
                              da greta
                              da gruta
e se espraiar em pleno grude
                      além da grade
do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar
de pé, cartesiana milícia enfileirada,
obediente filha da pauta?

Por que a poesia não pode ficar de quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
-CARPE DIEM!-
fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso
sem poder se operar
e, operada,
                   polimórfica e perversa,
não poder travestir-se
                   com os clitóris e os balangandãs da lira?

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O Que a Polícia Precisa Fazer

Policiais em ação na Vila Cruzeiro, em Porto Alegre. Foto: Samuel Maciel - Correio do Povo

Essa imagem (do fotógrafo Samuel Maciel, do Correio do Povo) é muito bacana e mostra o quanto a presença da Polícia pode ser importante na vida das comunidades e, principalmente, das crianças. Não só de forma punitiva, mas humanizada, afinal, o policial é, antes de tudo, um servidor público.

É um papo meio careta, sei. Porém, essa postura pode construir um novo jeito de ver a segurança.

Na minha infância, a Polícia foi sempre muito ausente. Só percebi que ela existia quando comecei, com 13 anos e por toda minha juventude, a tomar "atraque" e ser revistado em meu bairro, o Parque São Sebastião. Eu era suspeito de alguma coisa (lógico, eu vivia na esquina de bobeira; vivia na rua de bobeira). O resultado: não gostava de policial, de falar com policial, de olhar para um policial.

E como se constrói um conceito de cidadania sem confiar ou sem ter nenhuma relação com a Polícia?

Acredito que não basta somente ampliar os efetivos, construir mais presídios, endurecer com a bandidagem, cobrar do Judiciário, etc. Sim, tudo isso é muito importante, mas é fundamental apostar na convivência, no contato com os cidadãos. Não só quando tem que punir. Não só quando existe um crime. Enfim, a polícia precisa estar mais presente na vida das pessoas.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Ano dos Mortos Ganha Capa


Meu segundo livro começa a tomar forma. A capa tá lindona (e como no primeiro, diz muito sobre a história). Logo, logo vai pra rua. A editora é a Bartlebee.


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Se Tem Água Em Marte


Se tem água, certamente tem escritor independente em Marte
Se tem água, tem gráficas que fazem descontos para escritores e editoras independentes em Marte
Se tem água, tem panelinhas de escritores em Marte
Se tem água, tem feiras literárias em Marte

Se tem água, é possível que tenha leitores em Marte
Mas não há comprovação científica sobre isso

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

As Primeiras Frases De Livros Que Ainda Não Li



Tenho a sorte de ter uma fila de livros para ler. Não é fácil escolher qual será a próxima leitura. Mas faço assim: quando encerro um, tenho o hábito de ler a primeira frase dos que estão na espera. Não é um grande parâmetro, porém, ajuda na escolha.

Estas são as primeiras frases dos livros que estão na fila.

“Foley nunca tinha conhecido uma prisão onde fosse possível andar até a cerca sem levar um tiro”. Irresistível Paixão – Elmore Leonard 

“Toda vez que recebiam um telefonema do hospital de leprosos para pegar um cadáver, Jack  Delaney começava a se sentir gripado ou algo assim”. Bandidos – Elmore Leonard 

"Ninguém lhe prestou maior atenção, pois naquele local e hora – uma esquina da avenida principal da cidade: oito da noite – ele era apenas uma das muitas centenas de criaturas humanas que se moviam nas calçadas”. Noite – Erico Verissimo 

“Ao longo dos meus dez anos de exílio, um sonho acompanhou-me de tempos em tempos, intermitente”. Memórias do Esquecimento – Flávio Tavares 

“Para se tornar o que chamamos de “uma estrela”, não basta ter um talento único em uma ou outra manifestação artística: parece ser preciso também um vácuo interior tão negro e profundo quanto o brilho de uma estrela”. Mick Jagger (biografia) – Phillip Norman 

“Trepei com Joana cinco vezes e sem camisinha, o que me deixou orgulhoso e envaidecido – a princípio mais pela quantidade que pela aproximação”. Joana a Contragosto – Marcelo Mirisola 

“Na beira da viela que dá para a Rua Vernon, um gato cinzento esperava uma grande ratazana sair de sua toca”. A Lua na Sarjeta – David Goodis 

“Foi no verão de 1998 que meu vizinho Coleman Silk – que até se aposentar, dois anos antes, fora professor de letras clássicas na Faculdade Athena por vinte e tantos anos, além de atuar por mais dezesseis anos como decano – confidenciou-me que, aos setenta e um anos de idade, estava tendo um caso com uma faxineira de trinta e quatro que trabalhava na faculdade”. A Marca Humana – Phillip Roth

“Quando Dolan recebeu a chamada para se apresentar na sala do editor-chefe , sabia que isso significava o fim, e durante todo o tempo em que subiu as escadas, só ruminava uma ideia: já não havia mais colhões no jornalismo atual”. Mortalha Não Tem Bolso – Horace McCoy

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: O Estrangeiro - Albert Camus

Autor de A Peste, O Mito de Sísifo, entre outros

O ESTRANGEIRO
Albert Camus

I

Hoje morreu a minha mãe. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo:
"Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames".
Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o ônibus das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite.
Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe "A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade: é que eu não tinha que me desculpar: Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Quando o Tempo Não Doía


Viviam a fase que o amor é um assombro. Cada descoberta, cada coincidência, era um regojizo. "Faraco é muito foda!", "Não entendo quem acha Beatles melhor que Stones". "O quê o De Niro tá fazendo?!". Os dias não doíam. Eles soltavam lugares-comuns sem medo de parecerem ridículos. Passeavam no parque só para matar o tempo entre uma foda e outra - não porque estavam entediados, como todo mundo faz.

Se fosse permitido auscultar o coração deles, daria para ouvir uma canção da Marisa Monte.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Amigo Em Dúvida


- Doo 10% do meu salário pra igreja e limpo a minha barra com Deus ou sigo investindo 100% na perdição?

E olhou pra mim, aguardando uma resposta. Estou até agora sem saber o que dizer.

domingo, 13 de setembro de 2015

Versinho Perdido


A casa toda escura. Só eu, tateando coisas e tentando ver com a luz da tela de um aparelho celular. Tropecei na gata preta - uma ruana que agora vive comigo. Acertei a quina da cama com o dedo mínimo do pé esquerdo. Gemi quase calado. Tentei, sem sucesso, não acordar minha esposa, que tinha compromisso importante na manhã seguinte. - Te aquieta! - ela disse. Enfim, quando consegui me recompor - prestes a tomar a caneta sobre o criado-mudo -, perdi o verso em algum canto da memória. Uma estrofe hermosa que me surgiu enquanto escovava os dentes numa noite que faltou luz...

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Virose à Venda na Amazon


Ainda espero novidades para este ano. Mas, enquanto isso, dou o toque que Virose (Bartlebee Livros, 2013) está à venda na Amazon.

O preço é justo, R$28 + frete.

Dá comprar neste link - http://www.amazon.com.br/Virose-Lucas-Barroso/dp/8564914220 


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Toda Aquela Inevitável Pressa De Te Dizer Nada, de Adalberto Souza - Uma Apresentação


Tive o prazer de fazer o texto de apresentação do mais recente livro do poeta Adalberto Souza, Toda Aquela Inevitável Pressa De Te Dizer Nada (Buqui, 2015). Ele é de Maceió, autor de "Contando Solidões”, “Fantasmas não andam de montanha russa” e do premiado “Das coisas que esquecemos pelo caminho”, Prêmio Lego (UFAL/2011).

Abaixo, o texto que montei após ler o livro em primeira mão.


O título, Toda Aquela Inevitável Pressa em Te Dizer Nada, já diz um pouco sobre a essência do mais recente livro de Adalberto Souza. É uma conversa urgente. Um bate-papo necessário entre amigos, que a correria dos dias, muitas vezes, acaba nos sonegando. Então, nada mais lógico que convidar outros escritores-amigos para participar dessa roda. Cada um contribuiu com um verso, que serve como apresentação de um novo capítulo das tantas histórias que Adalberto conta em cada um de seus poemas. 

É um livro escancaradamente íntimo, como toda poesia boa deve ser. Um diálogo com o leitor, que certamente vai se enxergar nas diversas cenas e cenários que o autor constrói. Na solidão e no louvado desespero que ecoam pelas páginas. Na porção de amores não correspondidos. Nos porta-retratos – alguns sem fotografia, emoldurando o vazio. Nas oferendas que o mar não recebeu. Afinal, como ele mesmo diz, “qualquer semelhança com a fantasia será mera realidade”. 

Adalberto Souza tem alguns diferenciais. Só ele junta Madonna e Cauby Peixoto e faz tudo parecer natural. Só ele dança valsa em pleno carnaval pernambucano sem parecer ridículo, porque ele percebe e cata o erudito de tudo que está em nossa volta. Inclusive, das coisas aparentemente pequenas, como um pedaço de Bombril na antena da televisão. Seria para melhorar a imagem do mundo? Ou para ver a fantasia melhor? Adalberto sabe que poesia é olhar. Poesia é desformatar o olhar. Simples assim. Se você chegar bem perto dos versos, aposto que vai escutar até o que ele não disse.

Entretanto, esse exercício está longe de ser algo fácil de colocar em prática. Adalberto caça palavras, busca a certa e faz música, crônicas, frases de para-choque de caminhão, obituários e, se nada der certo, ele vai até o setor de achados e perdidos da Rodoviária. Lá, entre trecos inúteis de uma utilidade urgente, alguém certamente deixou um belo verso pra trás. E poesia é isso: essa arqueologia do banal, do corriqueiro. 

Poesia, meu amigo, é o que Adalberto sabe fazer. 

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O livro tem 121 poemas. Separei dois. 

25

Sua vida
é uma
obra
de
ficção.

Qualquer
semelhança
com
a
fantasia
será
mera
realidade.



78

Transitava
entre
gêneros
literários.

Dizia
ser
poeta,
mas 
escrevia
somente
obituários.


Mais informações no site da editora - www.buqui.com.br.

sábado, 5 de setembro de 2015

O Vasto Mundo de Moacir Scliar e Uma Alegoria da Velhice


Sempre admirei a produtividade de Moacir Scliar. Um livro atrás do outro, um livro atrás do outro até o fim. Nunca o achei um fora de série. O motivo pode ser exatamente a sua virtude: com uma vasta produção é impossível acertar sempre. Contudo, Scliar tem algumas belas obras em sua bibliografia.

A Guerra do Bom Fim (1997, editora LPM) é um exemplo. Em certo trecho da narrativa, ele constrói uma bela alegoria do que imagino seja o significado - um deles - de envelhecer. Para falar sobre o tempo, o autor conta a breve história da égua conhecida como Maliciosa. Scliar encerra assim:

"No Bom Fim a égua envelhece e perde o deboche. Puxa com resignação a charrete de Samuel. Mas seus olhos não perderam o antigo brilho; e à noite sonha com centauros".

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Antônio Abujamra declama Jorge Luís Borges



O escritor vive. Ninguém é escritor das oito ao meio-dia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre, e se vê continuamente assaltado pela poesia. Assim como o pintor é assediado pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo estranho mundo dos sons, o escritor deve pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida alguma coisa que possa aspirar à eternidade.


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Uma Utopia Para o Ensino Superior Público


Comecei numa creche municipal de praça e segui pelo primeiro e segundo graus em escolas públicas. Por que na hora de alcançar o ensino superior eu fui barrado? Volta e meia, quando leio, ouço ou vejo debates sobre Educação, penso nisso. Penso na minha trajetória. Os vestibulares das universidades públicas são um filtro absurdo, que só excluem seus próprios alunos.

Não fiz cursinhos pré-vestibulares. Simplesmente saí do Colégio José Cândido de Godói e tentei fazer uma prova, com muitos temas que não me foram apresentados. Não fui aprovado, como era de se esperar. Como não teria tempo, nem condições financeiras de insistir na universidade pública, encontrei a Unisinos. Um ótimo ambiente, onde conheci grandes professores e amigos. E há seis anos me formei em Jornalismo. O curso, para mim, durou sete anos e meio.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

(+18) O Adestrador de Cães - Conto Publicado na Revista Sexus


Já tá na rua a sétima edição da tradicional Revista Sexus. Tem muita gente boa participando. Contos, poemas, ensaio fotográficos... É da pesada. Se você tem mais de 18, indico. Participo com um conto, O Adestrador de Cães.

Separei um trecho.

Tentei alguns movimentos desastrados e ela disse que meu tempo acabou. Se seguisse, dali em diante seria cobrado um adicional. Eu tentei barganhar, tinha pouco dinheiro, poderia dar mais alguma coisa, mas precisaria ainda de uma grana para tomar um táxi e ir pra casa. Àquela altura, meus pais já deviam estar preocupados. Ela parecia estar pensando na proposta, quando o cafetão deu três murros na porta do quarto do motel. Avisou, com um certo atraso, que o tempo tinha encerrado. Queria saber o que seria dali em diante. Eu me vesti rápido e dei um grito tímido, dizendo que já estava de saída. A corrida de táxi pareceu ter demorado uma eternidade.

Para ler o resto, só clicar no link ao lado: Revista Sexus 7 edição 

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um Breve Olhar Sobre "Desonra"

O autor sul-africano foi agraciado com o Nobel de Literatura, em 2003
Desonra (Companhia das Letras, 1999) é um dos livros mais sinceros e tocantes que já me deparei, sem dúvida. Os personagens de Coetzee tem um olhar duro em relação à vida.

Em diversos momentos, parecem distantes e resignados com seus destinos. Porém, estão sempre dispostos a novos recomeços. Mesmo que haja uma relação de silêncio entre eles. Mesmo que haja medo e incompreensão. Existe neles - nesses personagens trágicos - sobretudo, uma ânsia absurda, um desejo contido em seguir, já que seguir é a única alternativa possível.

Abaixo, o primeiro capítulo do livro.

sábado, 29 de agosto de 2015

Dostoievski e a Profissionalização da Arte


"É impossível escrever aquilo que queremos; temos de escrever o que nunca pensaríamos se não precisássemos de dinheiro".

Dostoievski, trecho de uma carta a seu irmão.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: O Pirotécnico Zacarias - Murilo Rubião

Autor de O Ex-Mágico, O Pirotécnico Zacarias, A Casa do Girassol Vermelho, entre outros

O PIROTÉCNICO ZACARIAS
Murilo Rubião

"E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como
a do meio-dia; e quando te julgares consumido,
nascerás como a estrela-d’alva".
Jó, XI, 17

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou
de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria
morrido o pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham
que estou vivo — o morto tinha apenas alguma semelhança
comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha
morte pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo
a quem andam chamando Zacarias não passa de uma alma
penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há
os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e
não aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista
pirotécnico, mas alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu
corpo não foi enterrado.
A única pessoa que poderia dar informações certas sobre
o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo porque os
meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela
frente. Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e
não conseguem articular uma palavra.
Em verdade morri, o que vem ao encontro da versão dos
que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou
morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais
agrado do que anteriormente.

sábado, 22 de agosto de 2015

O Fim de Semana Perdido ou Farrapo Humano


Era evidente que eu estava sozinho. Mas depois que cravei o ponto final, eu tive certeza. Senti que não havia nada, nenhum sentido naquilo. Escrever... No início, desconfiei que era egoísmo ou uma espécie de altruísmo torto, que serviria para algo ou alguém. Porém, agora, depois desse ponto, sei que não há qualquer justificativa plausível. A sensação é de presenciar um milagre ruim, que não salva, nem ilumina. Pensei um pouco em Deus, como é usual nessas horas, e imaginei que Ele só poderia achar engraçadas as pretensões humanas.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

In a Sentimental Mood


Quando o atendente concluiu, dizendo que um técnico viria somente no outro dia, eu me conformei. Não sou do tipo que bate-boca com atendentes. Sem televisão, celular, internet. Era isso. Não teria notícias ou acesso ao que acontecia lá fora.

Nada mal. Então, coloquei aquele disco do Duke Ellington e Coltrane e terminei a pilha de louça. Limpei a caixa dos gatos. Varri os pelos deles, que voavam por todo o apartamento. Fiz a barba e me deitei no sofá.

A verdade é que eu não precisava de acesso a nada. O que eu necessitava era de momentos e algumas notas de sax para preencher o silêncio.

Passei os olhos num conto do Faraco. Eu já conhecia aquela história, como as demais, mas sempre tinha um detalhe, um novo jeito de olhar. A luminária estava repleta de moscas mortas, diminuindo a força da luz. O livro ficou de lado e só restou a música.

O sofá já tinha meu corpo desenhado. Os pensamentos iam se encaixando nas estantes da minha cabeça – essa semana seria uma boa visitar meus pais, pensei.

Como uma mulher sem passado, a noite se aconchegou ao meu lado. Se sonhei, não me lembro.


quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Ativismo É A Segunda Pauta


Saiu um texto meu no site Mínimo Múltiplo, editado pelo amigo Lucas Colombo. O tema é o ativismo como segunda pauta na classe artística.

Separei um trecho:

"Em um país como o nosso, onde os meios de divulgação de cultura são tão raros, é de se lamentar que alguns artistas de relevância, com milhares de “seguidores”, percam tanto tempo com temas “menos relevantes”, sendo que, na maioria dos casos, há especialistas de maior calibre e bagagem para abordá-los. Acontece assim: em vez de o cantor falar sobre música, por exemplo, ele prefere gastar uma dose considerável de sua energia para comentar – o mais correto seria palpitar – sobre política partidária, posando de entendido sobre o assunto. Será que seu público não acharia legal saber que disco ele gostou de ouvir recentemente? Ou, então, receber uma sugestão de bom show de um novo músico ou banda?".

E por aí vai...

Nesse link (http://minimomultiplo.com/index.php?page=260), o texto completo.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Os Olhos de Saramago


No final, exausto de tanto caminhar, já com os olhos sem cor, José Saramago, em uma conferência em São Paulo, arriscou o que significa isso tudo.

"A inutilidade da vida... Não conseguimos fazer dela mais do pouco que ela é".

E a plateia não sabia se aplaudia ou esperava uma nova sentença. Como Saramago nada disse, as pessoas, atordoadas, resolveram aplaudir.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Visão de São Paulo à Noite - Roberto Piva


Autor de Paranoia, Piazzas, 20 Poemas com Brócoli, entre outros

VISÃO DE SÃO PAULO À NOITE
Roberto Piva


Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
          acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
          chupando-se como raízes

Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
          feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
          definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apóia em nada
eu não me apóio em nada

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Uma “Chegadinha” Não Faz Mal a Ninguém


O futebol mudou consideravelmente. Preparação física de ponta. Cifras estrondosas. Estádios modernos. Cobertura massiva da imprensa. Até o jeito de torcer está mudando. Porém, uma coisa não dá para deixar cair no esquecimento: a marcação individual. Falo isso porque assisti Inter e Tigres, semifinal de Libertadores, e vi o tal de Gignac – excelente jogador francês, que recebe a bagatela de 1 milhão de dólares mensais – desfilar toda sua técnica sem ser ao menos incomodado pelos defensores colorados. Será que ninguém da comissão técnica sabia que ele era um jogador diferenciado e mereceria uma atenção especial?

Não sei se resolveria a vida do Inter, afinal, o Tigres se mostrou mais time. O certo é que faltou a tradicional “chegada” no francês. Aquela leve truculência ou malícia às avessas sempre presente nas marcações sob pressão. Não falo em pontapé ou deslealdade, mas sabe como é... Acho que você, estimado leitor, já jogou bola contra alguém diferenciado. Não é nada fácil parar quem entende do riscado. Eu mesmo, como zagueiro mediano de várzea, utilizo algumas artimanhas, até psicológicas, para tentar segurar o ímpeto dos boleiros. Acontece que, ultimamente, tenho visto pouco isso – as exceções são os argentinos e uruguaios. Comentaristas e técnicos preferem que os sistemas defensivos se organizem em zonas. Então, será que, junto das outras antiguidades do futebol, a marcação individual também ficará no passado?

No Mundial de 2011, Durval bem que tentou "se aproximar" de Messi. Não deu. 4x0 Barcelona
Nesses dias após a eliminação do Inter, encontrei dois reconhecidos ex-jogadores da dupla Gre-Nal. Pedrada, que jogou no tricolor e teve sucesso em clubes do Norte-Nordeste na década de 70 e ainda bate uma bola na praça Tamandaré, e Uga, atacante colorado e do extinto Renner nos anos 50 e 60 que, hoje, com 80 anos, desfila sua sabedoria pelas ruas do meu querido Parque São Sebastião. Os dois concordam comigo. Ficaram perplexos com a liberdade de Gignac e, ambos, confirmaram. “Em nossa época, em jogos decisivos, não tinha essa moleza. Sempre havia um chato em nossa volta”.

E não é só no futebol que isso acontece – ou acontecia. No vôlei, esporte que não prevê contato físico, vocês devem lembrar das rusgas entre Brasil e Cuba. As cubanas faziam um pontinho e debochavam, coladas à rede, da turma de Ana Moser, Márcia Fu e Fernanda Venturini. O objetivo era desestabilizar as brasileiras. Dava certo. Voltando a grama. Em 70, Falcão foi anulado por Jurandir, em um GreNal memorável. Não muito longe, em 2006, Ceará teve a missão de “não jogar” e só vigiar os passos de Ronaldinho Gaúcho, que era na ocasião o melhor do mundo. Foram medidas que deram resultado positivo.
Para quem sabe "chegar", o resultado é o conhecido segue o jogo do juiz
Lógico que, muitas vezes as “chegadas” deram errado – vide o estabanado caso de Felipe Melo na Copa de 2010 –, afinal, é complicado marcar um craque. Entretanto, não custa pelo menos tentar. Uma “chegadinha” não faz mal a ninguém...

terça-feira, 28 de julho de 2015

O Que É a Vida?


Antônio Abujamra (falecido em abril deste ano) encerrava suas entrevistas, no reconhecido programa Provocações, da TV Cultura, com a clássica pergunta.

- Fulano, o que é a vida?

Sempre me imaginei no lugar dos entrevistados. Minha resposta seria essa.

- Não faço a mínima ideia. Mas se há resposta para isso, deve estar em algum disco do Paulinho da Viola...


terça-feira, 21 de julho de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Vista Cansada - Otto Lara Resende

Autor de Boca do Inferno, Bom Dia Para Nascer, entre outros
VISTA CANSADA
Otto Lara Resende


Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Crônica publicada na Folha de SP, em fevereiro de 1992

domingo, 19 de julho de 2015

Um Pouco de Porto Alegre


Às vezes, quando caminho pelo Centro, tenho a impressão que Porto Alegre é uma cidade de almas penadas, de almas pesarosas, de seres cansados de sonhar. Homens e mulheres sem nenhuma possibilidade de fuga. Personagens de versos de Lupicínio Rodrigues, sobrevivendo fora de suas canções, escondendo seus dramas dentro de capotes ou sob guarda-chuvas.

Suas pegadas deixam uma frustração e uma melancolia marcadas nas calçadas. Até as lojas e centros comerciais são lúgubres em Porto Alegre. Tudo se dissipa e se renova rapidamente sem deixar de ser a mesma coisa.

Pressinto que os porto-alegrenses tem pressa, mas não tem onde chegar. Amanhã, cruzarei com eles outra vez. E esse sentimento idêntico vai me assolar.

Porém, acredito que se eu vivesse em Montevidéu  ou em Praga teria essa mesma impressão.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Onde Me Encontrar



Se você é de Porto Alegre, é possível encontrar meu romance, Virose (ed. Bartlebee, 2013), na biblioteca pública municipal Josué Guimarães, localizada na av. Erico Verissimo, nº 307. Pra quem não é, ele está à venda no site da editora, neste link: http://www.bartlebeedeli.com.br/pd-bf277-virose.html?ct=62fe5&p=1&s=1 

segunda-feira, 13 de julho de 2015

A Hora e a Vez dos Clássicos: Casal de Três - Nelson Rodrigues

Autor de A Vida Como Ela É, Engraçadinha, O Óbvio Ululante, entre outros
CASAL DE TRÊS
Nelson Rodrigues

O sogro era um santo e patusco cidadão. Assim que o viu arremessou-se, de
braços abertos:
— Como vai essa figura? Bem?
Filadelfo abraçou e deixou-se abraçar. E rosnou, lúgubre:
— Essa figura vai mal.
Espanto do sogro:
— Por que, carambolas? — E insistia: — Vai mal por quê?
Caminhando pela calçada, lado a lado com o velho bom e barrigudo, Filadelfo foi
enumerando as suas provações, só comparáveis às de Job:
— É o gênio de sua filha. Sou desacatado, a três por dois. Qualquer dia apanho
na cara!
Dr. Magarão assentiu, grave e consternado:
— Compreendo, compreendo. — Suspira, admitindo: — Puxou à mãe. Gênio
igualzinho. A mãe também é assim!
Súbito, Filadelfo estaca. Põe a mão no ombro do outro; interpela-o:
— Quero que o senhor me responda o seguinte: isso está certo? É direito?
O velho engasga:
— Bem. Direito, propriamente, não sei. — Medita e pergunta: — Você quer uma
opinião sincera? Batata? Quer?
— Quero.
E o sogro:
— Então, vamos tomar qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que
todo homem casado devia saber.

TEORIA

Entram num pequeno bar, ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçon vai e
vem, com uma cerveja e dois copos, dr. Magarão comenta:
— Você sabe que eu sou casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência,
vejo a dos outros. Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo.
Espanto de Filadelfo:
— Assim como?
O gordo continua:
— Como minha filha. Sem tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa
amável, da esposa cordial, gentil. A virtude é triste, azeda e neurastênica.
Filadelfo recua na cadeira:
— Tem dó! Essa não! — E repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma
da cerveja: — Essa, não!
Mas o sogro insistiu. Pergunta:
— Sabe qual foi a esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma
que traía o marido com a metade do Rio de Janeiro, inclusive comigo! — Espalmou a
mão no próprio peito, numa feroz satisfação retrospectiva: — Também comigo! E
tratava o marido assim, na palma da mão!
Uma hora depois, saíam os dois do pequeno bar. Dr. Magarão, com sua barriga
de ópera-bufa e bêbado, trovejava:
— Você deve se dar por muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a
Deus!
O genro, com as pernas bambas, o olho injetado, resmunga:
— Vou tratar disso!

O DESGRAÇADO

Não mentira ao sogro. Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia
tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele estimava em oito dias, nunca
mais fora bem tratado. Sofria as mais graves desconsiderações, inclusive na frente de
visitas. E, certa vez, durante um jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com a
seguinte observação, em voz altíssima:
— Vê se pára de mastigar a dentadura, sim?
Houve um constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só
faltou atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial, ele
já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não compreendia
que Jupira, amabilíssima com todo mundo, fizesse uma exceção para ele, que era,
justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa desesperado.
Chega, abre a porta, sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação:
— Não acende a luz!
Obedeceu. Tirou a roupa no escuro e, depois, andou caçando o pijama, como um
cego. E quando, afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou
mesmo um ano que o beijo na boca fora suprimido entre os dois. O máximo que ele,
intimidado, se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa. Se queria ser
carinhoso demais, ela o desiludia: “Na boca não! Não quero!”. Outra coisa que o
amargurava era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se
perfumava. Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se da teoria do sogro: —
“Será que a esposa honesta também precisa cheirar mal?”.

MUDANÇA

Um mês depois, ele chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa sem
precedentes: a mulher, pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa
tão violenta que Filadelfo perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as
mãos o seu rosto e o beija na boca, num arrebatamento de namorada, de noiva ou de
esposa em lua-de-mel. Ele apanha o jornal, que deixara cair. Maravilhado, pergunta:
— Mas que é isso? Que foi que houve?
Jupira responde com outra pergunta:
— Não gostou?
Ele senta, confuso:
— Gostar, gostei, mas... — Ri: — Você não é assim, você não me beija nunca.
Jupira tem um gesto de uma petulância que o delicia: vem sentar-se no seu colo,
encosta o rosto no dele. Filadelfo é acariciado. Acaba perguntando:
— Explica este mistério. Aconteceu alguma coisa. Aconteceu?
Ela suspira:
— Mudei, ora!

SOFRIMENTO

A princípio, Filadelfo conjeturou: “É hoje só”. No dia seguinte, porém, houve a
mesma coisa. Ele coçava a cabeça: “Aqui há dente de coelho!”. Coincidiu que, por essa
ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. Dr. Magarão, enquanto a mulher
conversava com a filha, levou o genro para a janela: “Como é? Como vai o negócio
aqui?”.
Filadelfo exclama:
— Estou besta! Estou com a minha cara no chão!
O velho empina a barriga de ópera-bufa:
— Por quê?
E o genro:
— Tivemos aquela conversa. Pois bem. Jupira mudou. Está uma seda; e me trata
que só o senhor vendo!
Ao lado, mascando o charuto apagado, o velho balança a cabeça:
— Ótimo!
— O negócio está tão bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar!
O sogro põe-lhe as duas mãos nos ombros:
— Queres um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te
custa ser cego? Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido
não deve saber nunca!

LUA-DE-MEL

Seguindo a sugestão do sogro, ele não quis investigar as causas da mudança da
esposa. Tratou de extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver
num regime de lua-de-mel. Dias depois, porém, recebe uma minuciosíssima carta
anônima, com dados, nomes, endereços, duma imensa verossimilhança. O missivista
desconhecido começava assim: “Tua mulher e o Cunha...”. O Cunha era, talvez, o seu
maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo, duas, com o casal. A carta
anônima dava até o número do edifício e o andar do apartamento em Copacabana onde
os amantes se encontravam. Filadelfo lê aquilo, relê e rasga, em mil pedacinhos, o papel
indecoroso. Pensa no Cunha, que é solteiro, simpático, quase bonito e tem bons dentes.
Uma conclusão se impõe: sua felicidade conjugal, na última fase, é feita à base do
Cunha. Filadelfo continuou sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Jupira
revivia, agora, os momentos áureos da lua-de-mel. Certa vez jantavam os três, quando
cai o guardanapo de Filadelfo. Este abaixa-se para apanhar e vê, insofismavelmente,
debaixo da mesa, os pés da mulher e do Cunha, numa fusão nupcial, uns por cima dos
outros. Passa-se o tempo e Filadelfo recebe a notícia: o Cunha ficara noivo! Vai para
casa, preocupadíssimo. E, lá, encontra a mulher de braços, na cama, aos soluços. Num
desespero obtuso, ela diz e repete:
— Eu quero morrer! Eu quero morrer!
Filadelfo olhou só: não fez nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o
revólver e saí à procura do outro. Quando o encontra, cria o dilema:
— Ou você desmancha esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o
dito por não dito. À noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à
mesa, Filadelfo vira-se para o amigo e decide:
— Você, agora, vem jantar aqui todas as noites!
Quando o Cunha saiu, passada a meia-noite, Jupira atira-se nos braços do marido:
— Você é um amor!

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A Rede Globo produziu a série A Vida como Ela É, em 1996. Casal de Três foi um dos episódios. 


sexta-feira, 10 de julho de 2015

Artigo Publicado no jornal Zero Hora: O 7x1 Não Foi Só Culpa da CBF


Texto foi publicado no caderno de Esportes, página 50

O 7x1 não foi só culpa da CBF

Quando ocorre uma tragédia é natural procurar e apontar culpados. Faz parte de nossa cultura. O 7x1 fatídico contra a Alemanha, em casa, foi uma tragédia. A culpada, agora, um ano após o acontecimento, parece ser a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), segundo avaliação dos maiores especialistas da área.

Eu discordo. Se acreditar somente nisso, terei de fazer o raciocínio inverso e crer que as cinco conquistas mundiais foram responsabilidade da entidade, já que desde 1958 – pelo menos – é notório que pouca coisa mudou na gestão do nosso futebol. Assim, Pelé, Didi, Garrincha, Jairzinho, Romário, Bebeto, Ronaldo e Rivaldo teriam de ficar em segundo plano, o que seria um absurdo. 

Com isso, não quero dar a entender que apoio a CBF, que está, volta e meia, envolvida em casos de corrupção – como o que resultou na prisão de José Maria Marin, seu ex-presidente. Falo do jogo nas quatro linhas, da responsabilidade dos jogadores e comissão técnica que, ao meu ver, são sempre os protagonistas em qualquer vitória ou derrota.

Vimos, nas oitavas de final, no estádio Beira-Rio, a seleção da Argélia encarar a Alemanha de igual para a igual, fazendo o craque goleiro Neuer trabalhar um bocado e ser escolhido o melhor em campo. Os argelinos só cederam na prorrogação. Então, por que o Brasil, em uma semifinal, já como um dos quatro melhores do mundo, conseguiu a façanha inédita de tomar 7x1? Não somos piores que a Argélia, não é mesmo?

Uma das respostas, a mais simples, é que a Alemanha tinha mais time que o Brasil. Temos a tendência a achar que somos os melhores sempre, afinal, somos pentacampões. Entretanto, quem acompanha futebol sabia que a geração deles era melhor. Mas a diferença não era tão abismal assim a ponto de achar que 7x1 seria justo – na partida, realmente o placar foi justo, porém, antes dela era algo inimaginável.

O lado psicológico pesou bastante e ficou evidente nos chororôs sem fim dos jogadores a cada partida. As escolhas erradas de Felipão e sua comissão técnica também foram cruciais – Daniel Alves, o lateral-direito, chegou a dizer que o elenco carecia de conceitos táticos –, assim como a ausência de Neymar, lesionado nas quartas de final, contra a Colômbia.

Enfim, um jogo. Noventa minutos que ficaram para sempre em nossa memória como o maior fracasso do futebol brasileiro. Podemos buscar e caçar os culpados, entretanto, o ideal nesses casos é colocar em prática a lei da Física: “A única forma dos homens chegarem a algum lugar é deixando algo para trás”. Que o 7x1 fique para trás e um novo futebol renasça dessas cinzas.