terça-feira, 2 de abril de 2024

Uma carta de Tchekhov


O pintor Levitan está passando uns dias no meu sítio. Ontem, ao entardecer, eu e ele fomos à zona da caça às galinholas. Levitan disparou e uma ave, ferida na asa, caiu num charco. Eu a levantei. Tinha um bico comprido, olhos grandes e pretos e uma plumagem bonita. Olhava para nós, espantada. O que podíamos fazer? Levitan franziu a testa, fechou os olhos e me suplicou, com voz trêmula: "Por favor, esmague a cabeça dela com a coronha da espingarda". Respondi que não era capaz. Os ombros dele não paravam de sacudir, estava nervoso, contraía o rosto e suplicava. A galinhola olhava para mim, espantada. Tive de obedecer a Levitan e matá-la. E, enquanto dois imbecis voltavam para casa e sentavam-se para jantar, havia uma criatura fascinante a menos no mundo.

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Trecho de uma carta de Tchekhov, escrita em 1892. A situação vivida serviu de inspiração para a peça A Gaivota.


quarta-feira, 13 de março de 2024

Ninguém escreve ao coronel - Trecho


 

Ela engolia a canjica. Momentos depois notou, porém, que o marido permanecia ausente. 


- Agora, o que você deve fazer é aproveitar a canjica. 

- Está realmente boa - falou o Coronel. - De onde saiu?

- Do galo - respondeu ela. - Os rapazes trouxeram tanto milho que ele emprestou um pouquinho pra gente. A vida é assim.

- Se é - suspirou o marido. - A vida é a melhor coisa que já se inventou.

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Trecho de Ninguém Escreve ao Coronel, romance de Gabriel Garcia Márquez.


sexta-feira, 8 de março de 2024

A velha máquina de lavar


A máquina de lavar aqui de casa resiste há quase quarenta anos. Não desiste de trabalhar. Lavou roupas de quatro gerações. Avós, pais, filhos e, agora, os netos. Os avós não existem mais e se existissem seriam bisavós. Todas as modas e costumes do vestuário nacional – que vem e vão –passaram por essa Brastemp branca. Um sem número de consertos foram realizados nela. E pelo mesmo técnico: o senhor Baltazar. Um velho seco, bronzeado, rígido, de fala mansa e sorriso tímido.  

- E agora, vale a pena consertar essa geringonça, seu Baltazar?

- Vale, sim. Isso é coisa que não se faz mais. Muito melhor que as máquinas de lavar atuais.

E assim vamos indo. Dessa vez, a máquina não se entregou por muito pouco. O problema foi no cesto. E outro cesto para repor seria muito difícil de achar. A cada lavagem pequenos pedaços de plásticos se esfarelavam junto as roupas. Porém, como sempre, teve conserto. 

- Eu acho que essa máquina ainda vai lavar as roupas de meus netos, seu Baltazar – comentei com ele, enquanto o velho reinstalava tudo pela enésima vez. 

- É bem possível. 

- E acho que vai ser o senhor que vai consertá-la.  

Ele sorriu.  

- Acho que já vou ter ido me embora. Pra tudo tem conserto, né? Menos pra morte.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Pensar Duas Vezes


Diz a máxima que um diplomata é um sujeito que pensa duas vezes antes de dizer nada. Foi exatamente o que não fez Lula quando, durante um compromisso na Etiópia, resolveu dar um sermão em Israel, alegando que as ações israelenses na Faixa de Gaza são comparadas ao holocausto perpetrado por Hitler contra o povo judeu. Lula disse assim. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”. 

Até então nenhum líder mundial tinha tido a ideia de usar o holocausto como sinônimo de nada relativo à guerra entre Israel e Hamas. Ainda mais contra os próprios judeus – estima-se que foram mais de seis milhões de mortos por Hitler. Uma comparação agressiva e desnecessária, ainda mais para quem preside o G20 – grupo que reúne as maiores economias do mundo – e lidera um país que está há milhares de quilômetros do conflito.  

Outro ponto que deixa o cenário mais absurdo é que Lula, ao vencer a última eleição presidencial, jurou que mudaria a imagem do Brasil no exterior, após o desastre que foi Bolsonaro nesse quesito. Inclusive, o slogan do atual governo é união e reconstrução. Indicativos que, no caso de Israel x Hamas, reforçar a importância de um cessar fogo, sem acusações a nenhum lado, seria um bom caminho retórico. 

Mas Lula sabe, sim, usar a diplomacia. No mesmo compromisso citado, o presidente brasileiro foi questionado sobre mais dois casos internacionais relevantes. Um deles foi a expulsão de agentes do escritório de Direitos Humanos da ONU na Venezuela, país vizinho. Outro tema foi a morte misteriosa de mais um opositor ao governo russo, de Vladimir Putin. Para ambos, Lula não tinha informações, sinônimos, adjetivos ou comparações.  

Ou seja, pensou duas vezes.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Algumas Boas Leituras Possíveis


Fiz uma lista breve com dicas de leitura para uma revista literária, que optou por não publicar meu texto. Faz parte.

Mas como gostei do que sugeri, publico por aqui. São livros de contos, romance, poesia, quadrinhos, biografia e jornalismo. 


A Vida Como Ela É – Nelson Rodrigues

Em uma série de entrevista culturais que fiz, em um certo momento da minha vida jornalística, conversei com algumas personalidades da Cultura, como músicos, escritores, cineastas. Durante o papo, perguntava sobre as ideologias políticas deles, essas coisas de ser de direita ou de esquerda. Quando o entrevistado se dizia de esquerda, eu tascava na sequência “e quem da direita você admira ou respeita?”. Quase todos diziam Nelson Rodrigues. 

Eu sei que indicar a leitura de um autor onipresente no imaginário brasileiro é reforçar o obvio ululante – termo cunhado pelo próprio Nelson. Porém, A Vida Como Ela É tem muita força. Seus contos e personagens ultrapassaram o lugar-comum de serem o retrato de sua época. Eles ainda residem nos subúrbios, nas altas rodas da sociedade ou nas páginas policiais. Basta ler – ou reler – com atenção. 

Dora Bruder – Patrick Modiano

Patrick Modiano inicia Dora Bruder, romance publicado em 1997, a partir de um anúncio, que descobriu folheando um jornal antigo, o Paris-Soir, do dia 31 de dezembro de 1941.

"Procura-se jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom-acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho, sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris".

A partir dessas informações, Modiano tenta recontar os passos de Dora, uma francesa filha de judeus. A narrativa, não linear, é construída com base em pistas, suspeitas, alguns dados oficiais e lembranças do período de ocupação nazista na França – tema recorrente nas obras do autor. A própria trajetória de Modiano, que viveu esse período na mesma região da personagem, serve como auxílio para tentar entender o que aconteceu a ela.

O romance reconstitui um tempo nebuloso de nossa história, onde vidas eram relegadas ao esquecimento, por pura tirana e intolerância. Entretanto, Modiano não aponta para os culpados, ele apenas se faz presente - de mãos dadas a Dora. Seu objetivo é não nos deixar esquecer a barbárie.

Morda meu coração na esquina: Poesia reunida – Roberto Piva

Roberto Piva não foi um poeta fácil - em todos os sentidos que a palavra compreende. Dono de uma poesia declamada, esbravejada, suja e lírica, ele dizia que só acreditava em poeta experimental, que tenha tido uma vida experimental. Um autor que estava fora de catálogo há anos e, ao mesmo tempo, era muito admirado, lido e copiado – poetas de redes sociais tem aos montes, fingindo ter a sua verve. 

Alguns arriscam que Piva foi um autor à frente de seu tempo, o que é uma bobagem – recorrente quando se fala de escritores do seu calibre. Entretanto, é inegável que seus versos falam desse mundo de hoje, tão virtual, frio, disperso, urbano e decadente. 

Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos – Harvey Pekar e Robert Crumb

Quando um desajustado encontra outro desajustado a tendência é não dar boa coisa. Mas em Bob e Harv: Dois Anti-Herois Americanos a coisa funcionou muito bem. O consagrado Crumb soube captar as intenções e o próprio espírito de Pekar – um cronista de meia-idade, solitário e ranzinza.

O livro compila alguns dos quadrinhos publicados pela dupla em American Splendor, revista onde Crumb foi um dos tantos desenhistas colaboradores de Pekar. As histórias são sempre banais e giram em torno de uma cidade sem importância – Cleveland – e de um personagem cheio de manias – no caso, o próprio Pekar. 

Não parece uma leitura promissora, afinal, é só a vida acontecendo. Mas é como bem disse Laerte: “quando você já está lá dentro, conhecendo os amigos dele, achando graça nas esquisitices dele, como se fosse uma visita real naquele mundo”.

Dez! Nota dez! Eu sou Carlos Imperial – Denilson Monteiro

Não é uma tarefa simples resumir quem foi e o que fez Carlos Imperial. O trabalho do biógrafo Denilson Monteiro, portanto, foi uma missão árdua. Imperial lançou diversos cantores, como Roberto Carlos, Wilson Simonal e Tim Maia. Ele também compôs – há controvérsias – músicas de sucesso, foi jurado de programa auditório na televisão, cineasta e agitador do meio cultural nos anos 60, 70 e 80. Ah, Imperial foi pai de 11 filhos de sete mulheres diferentes.

Um anti-heroi e marqueteiro em estado puro. Alguém que jogou sujo com muita gente – Mário Gomes que o diga! Tudo isso está nessa biografia, nada chapa branca, assinada por Monteiro. Um texto ágil, bem construído e que também serviu como base para um ótimo documentário. 

O Gosto da Guerra – José Hamilton Ribeiro

José Hamilton Ribeiro, então jornalista da revista Realidade, foi escalado para cobrir a guerra do Vietnã, em 1968. Enquanto acompanhava soldados americanos no norte do país asiático, Ribeiro pisou em uma mina e perdeu a perna esquerda. Seu relato da guerra é cru, sem rodeios e não toma partido. Inclusive, em relação ao seu drama. Uma reportagem que virou o maior livro de jornalismo do país. A foto do trecho descrito abaixo ilustra a capa do livro.

"Ele foi na frente, seguindo o mesmo caminho usado pelos enfermeiros. E eu fui atrás dele. Nem bem dei uns cinco passos quando o estrondo de uma explosão povoou inteiramente meus ouvidos. Um zumbido agudo e interminável brotava na minha cabeça. Uma nuvem negra de fumaça fez desaparecer tudo à roda e eu tive a impressão, nítida, de que a bomba explodira exatamente em cima do soldado Henry. Quando a fumaça se dissipou um pouco e eu ainda não via Henry, imaginei que ele tivesse sido projetado para longe e a essa hora já devia até estar morto. Ele apareceu na minha frente de repente, com o rosto transformado numa máscara de horror. - Henry, você está bem? Ele não respondeu e continuou caminhando em minha direção. Senti-me sentado e não descobri por quê. Entrevi Shimamoto, saindo da fumaça, e ainda lhe perguntei: - Shima, você está ok? Ele trazia um cigarro aceso e tentou colocá-lo na minha boca. Não aceitei. Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue - Hoje eu sei, era o gosto da guerra. Cuspia, cuspia, mas aquela gosma amarga permanecia na boca. Então senti um repuxão violento na perna esquerda e só aí tive consciência de que a coisa era comigo".

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Depoimento de Mano Lima

Eu nasci em Itaqui, mas só nasci e fui para Bororé, que sempre considerei meu ventre materno. Era uma criança muito tímida. Tinha muito medo das coisas da vida, e ali era meu refúgio, onde me sentia seguro. Foi meu grande apego. É onde vivo até hoje, praticamente. Meu dia a dia é sempre vinculado ao Bororé. Até nos momentos de caduques, quando estou deitado, falo: "Amanhã vou pra Bororé”. É uma coisa mágica, não sei explicar.

Mario Rubens era itaquiense, mas Mano Lima nasceu em São Borja, quando conheci Apparício Silva Rillo, um grande poeta por quem tinha admiração. Conheci o homem na fazenda onde trabalhava. Ele se impressionou: eu já estava tocando, fazendo verso. Era um grande visionário: enxergou em mim algo que nem eu mesmo conseguia enxergar. 

Eu sequer sabia algo de afinação. O palco me trouxe uma evolução como músico, mas também como pessoa. Não tem como comparar com aquele homem bruto, rústico que usava facão na cintura, adequado para o mundo selvagem que vivia. Tinha um vínculo com a natureza muito forte, maior do que com os humanos. Se chegava gente, disparava, me escondia. Tinha muita afinidade com os bichos, mas pouca com as pessoas, com a civilização. Quem me trouxe todo esse enriquecimento foi o palco.

Sempre cantei sobre o mundo que conhecia. Nunca tive dificuldade em fazer uma música sobre tropa, por exemplo. Ou letras baseadas em cachorro, cavalo e gado. Mas todas elas têm uma mensagem perante a vida. Estão relacionadas com histórias que aconteceram comigo ou com alguém que conheci. Todas elas têm um vínculo de verdade, porque não sou poeta. O poeta, sim, é um criador. 

Mudar não é fácil, não. Aí é que está o grande mistério da minha vida. É essa transformação

Mas tem coisas que tu precisas de tempo. A ignorância é o pior fardo que o ser humano carrega. Te faz antecipar no julgamento, então, te faz errar. Falo isso com propriedade, porque fui esse cara. Não fui um homem ignorante, fui muito ignorante. Preconceito com tudo. Se o cara me dissesse que era feliz fora do Bororé, já estava ali uma encrenca. Gostava de briga, que é o símbolo maior da ignorância. Gostava de perigo. Aprendi a ginetear justamente pelo desafio ao perigo. Quando criança, me assustava com tudo. Com o tempo, fui perdendo isso. Passei a gostar de desafio. Também percebi que o palco me trouxe muita riqueza. Mas nada disso adiantaria se eu não tivesse índole. 

Deus me fez trazer uma mensagem, com uma missão a ser cumprida. Eu trouxe essas duas misturas, esse campo-cidade. Esse intelectual, esse "filósofo campeiro". Tenho essas duas coisas. Tenho lado rústico, fui ignorante, mas hoje levo uma certa cultura. Mas como uma pessoa pode mudar tanto? Será que não está se fazendo? Mudar não é fácil, não. Aí é que está o grande mistério da minha vida. É essa transformação. É o que chamo de "mistério do Bororé".

Como disse para o Rillo quando escreveu Timbre de Galo: eu sou um homem fora do tempo. Se pudesse, voltava para o princípio do mundo. Eu sinto isso. Não entendo nada do mundo moderno. Gosto de tudo que é antigo. Sou um homem que se não tiver um ar puro para respirar, sente dor de cabeça. Gosto de sentar na frente da minha fazenda e olhar tudo que construí. Ouvir o berro do gado, das ovelhas. Ver a natureza. 

Fazer 70 anos é uma maravilha, só tenho que agradecer. Sinto saudade do Bororé e da juventude, sim, mas nem sei por quê. Não era para sentir saudade, porque a cada ano que passa minha vida é melhor que o outro que ficou para trás. Não vou te dizer que já corro sem cansar, mas continuo montando a cavalo, não senti ainda o peso. Acredito que com 80 vai começar a pesar, a não ser que Deus tenha outra maneira de pensar. Para mim, está sendo maravilhoso o carinho do público. Me tratam como um pai, e eu, que era uma criança tímida e carente, me encho de alegria. Fico feliz por completo.

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Depoimento do músico Mano Lima ao jornalista William Mansque, publicado em Zero Hora, no dia 4 de setembro de 2023. 


quarta-feira, 14 de junho de 2023

O juiz ladrão - Nelson Rodrigues


De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido, que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado sempre tem razão.

Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juizes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata, monótona e alvar honestidade. Abra-hão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.

Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático para os jogos modernos.

Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.

Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.

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Crônica de Nelson Rodrigues, publicada em Manchete Esportiva, no dia 31/12/1955 e republicada no livro À Sombra das Chuteiras Imortais (Companhia das Letras, 1993).